Nascer ou morrer da podridão ou a metafísica dos ossos moles: Mattia Denisse na Rialto6
Pau-podre é madeira pútrida, enfraquecida, talvez colonizada. Tronco doente, em vias de desaparecer, quebradiço ou, até, tombado. Menos conhecido, Pau-podre é, também, nome popular da espécie Caryodendron Grandifolium, planta frondosa que cresce nas margens fluviais, um tanto amarga e adstringente, ligeiramente aromática, de cujas folhas e frutas aproveitam-se diferentes propriedades curativas [1]. Pelas mãos de Mattia Denisse e com curadoria de João Maria Gusmão, Pau-podre torna-se, ainda, título de uma nova exposição de pinturas-desenhos que, entre algo de científico e algo de esotérico, algo de primordial e algo de terminal, nos oferecem imagens de uma cosmologia possível ou provável.
Na galeria Rialto6, o artista franco-português – será que, depois de mais de duas décadas a residir em Portugal, assim já o podemos definir? Ou será que o mais justo seria não enraizar, de todo, um criador extraterrestre e viajante? – abre-nos 17 janelas ao mundo que descobriu, ou através dos seus sonhos, ou nas suas itinerâncias transtemporais, transreais. Transbordantes de cores e curvas sinuosas, as imagens piscam os olhos à tradição pictórica da história da arte enquanto experimentam as texturas de uma ilustração anatómica e, ao mesmo tempo, de um conto de fadas infantil. Com evocações à natureza morta e às silhuetas em negativo de René Magritte, por exemplo, despertam-nos para o conhecido e o desconhecido, brincam com sabores leves e intensos, e introduzem-nos a espaços simultaneamente doces e sombrios.
Em Pau-podre, os ossos são moles, escorrem feito água por entre os dedos ou chorume por entre os sacos. Também os muros parecem inacabados, frágeis, em ruínas. É como se perdessem a sua verticalidade e não mais pudessem sustentar ou estruturar este universo. Na verdade, talvez os paus, no começo ou no fim do mundo, quem sabe, encontrem-se desde sempre e para sempre podres. Como era de se esperar, os humanos, com todo o seu falocentrismo duro e a sua assepsia obsessiva, não têm lugar nesta fantasia. Mas nesta “espécie de memória futura sem gente e história” [2], onde tudo já foi e será de-re-composto, há vida. Metamorfose. Magia. Cogumelos, rios e, quiçá, também os frondosos medicinais paus-podres. Reconhece-se a harmonia de uma presença espectral que parece perpassar todas as obras, algo cuja forma foge ao espelho, incapaz de a capturar. Um estranho “olhar que penetra nas camadas do mundo” anda “debaixo da pele” a sacudir “os sonhos” – “[m]últiplo, desarticulado, longe como o diabo” [3] e, simultaneamente, muito, muito próximo.
Quem é que observa através dos retrovisores? Serei eu? Serão estes os reflexos daquilo que está atrás de mim e que, no entanto, não se revela quando me viro de costas? Serei eu a consciência divina e onipresente que posso sentir nestas peças? Ou um fungo a assistir ao lento movimento da existência? O que me está a escapar? Se este é o tipo de perguntas que também vos invade a cabeça durante a exposição, melhor mesmo será tomar um gole do elixir de malte oferecido sobre a mesa.
Pensando bem, em qualquer uma das respostas, há um enorme elogio à liberdade – uma liberdade que transcende o corpo e a individuação; que compreende o risco, a instabilidade, o transitório e, sobretudo, o incognoscível. Não à toa Denisse é descrito, tão cirurgicamente, como um “estivador de obras metafísicas”, através das quais a lembrança (ou, interpretação que gosto ainda mais, o prenúncio) da humanidade sopra-nos o rosto “como uma brisa comovente de esperança revolucionária” [4]. Em última instância, é esta também a ousadia do desenho, que aparece mais declaradamente na enciclopédia exposta ao lado da poção alcoólica mágica, e, é bem verdade, de maneira mais discreta por entre a tinta acrílica ou a óleo pendurada nas paredes. Nada, porém, apaga a intimidade do artista com o carbono do lápis sobre a celulose ou a fibra das telas, uma relação de modéstia, e com alguma simplicidade, que é como quem diz: estejas à vontade! Não tenhas medo! Podes chegar mais perto… Deixa-te amolecer e apodrecer… E, então, o que vês agora?!
Diz-me depois de visitar Pau-podre, de Mattia Denisse, na galeria Rialto6, em Lisboa, patente até o dia 21 de julho.
[1] <http://site.mast.br/multimidias/botanica/frontend_html/artigos/index-id=279.html>.
[2] Folha de sala da exposição. Disponível em <https://rialto6.org/wp-content/uploads/2023/04/mattia-denisse-rialto6.pdf>.
[3] Cantiga de Malazarte, poema de Murilo Mendes. Disponível em <https://www.escritas.org/pt/t/7588/cantiga-de-malazarte>.
[4] Texto de apresentação da exposição. Disponível em <https://rialto6.org/exhibitions/pau-podre/>. Tradução livre.