Jimmie Durham: duas exposições imperdíveis em Nápoles
Na cidade de Nápoles (a sua terra de adoção, a par de Berlim), está patente, desde dezembro de 2022, uma conjugação entre uma retrospetiva em grande escala de mais de 150 obras de Jimmie Durham e um outro pequeno mas evocativo registo dos processos operativos do artista, em homenagem a esta importante figura do século XX, nascida em 1940 nos EUA e falecida no final de 2021 em Berlim.
Jimmie Durham: Humanity is not a Completed Project, no Museu Madre, com curadoria de Kathryn Weir (23.12.2022 – 08.05.2023) e And now, so far in the future, That no one will recognize, Any of my jokes, na Fondazione Morra Greco, com curadoria de Salvatore Lacagnina (22.12.2022 – 31.07.2023), propõem encontros íntimos e profundos com o artista e as suas esferas de pensamento, intervenção e ação.
Jimmie Durham foi uma figura versátil e plural, capaz de subverter os estereótipos e a canonização das formas artísticas na sua obra inventiva e multifacetada, onde a poesia, a cultura visual, o canto permitiram a livre expressão da sua visão autónoma do mundo. Participou em exposições por todo o globo e, em 2019, recebeu o Leão de Ouro pela sua carreira na 58.ª Bienal de Veneza.
O ativismo político e ecológico foi essencial na sua vida. Entre 1973 e 1980, trabalhou como organizador político no Movimento Indígena Americano, um grupo que reunia organizações do Equador, Chile e vários grupos indígenas norte-americanos. Foi consultor e representante principal do Conselho Internacional dos Tratados Indígenas na ONU.
Na Fondazione Morra Greco, o visitante tem a oportunidade de sentir a pessoa dentro da obra, o seu universo íntimo – com os livros e fotografias pessoais de Jimmie Durham, bem como os seus tapetes, um lagarto de peluche, instalações e desenhos do seu atelier em Nápoles -, um ‘gabinete de estudo’ imersivo para a partilha de conhecimentos e vivências. A exposição contém também vídeos com o artista a recitar poesia, entrevistas, um filme da sua coleção pessoal para ser visto num ‘home cinema’[1]. Esta proximidade ao universo íntimo, resultante de um longo historial de colaborações com a Fundação, é ainda reforçada pela presença cativante dos seus poemas, impressos em faixas de grandes dimensões que cobrem as paredes das salas de exposição, e que mostram as preocupações e os temas fundamentais da obra de Jimmie Durham.
Durham desconstrói, ao longo da sua obra, os efeitos atuais e históricos da expansão colonial e capitalista, põe a nu agendas racistas, a subordinação cultural e económica das “minorias”, a ambiguidade da política cultural. Um dos seus poemas na Fondazione Morra Greco refere:
“Na escola aprendi sobre as descobertas heróicas
Feitas por heróis e vigaristas. A coragem
de milhões de pessoas doces e verdadeiras
Não foi celebrada.
Declaremos um feriado,
A nós próprios, e façamos um desfile que comece
Com as vítimas de Colombo e continue
Até aos nossos netos que terão o nome
Em sua honra.”
No Museu Madre (Museo d’arte contemporanea Donnaregina), somos postos perante uma importante retrospetiva – Jimmie Durham: Humanity is not a Completed Project. A mostra estrutura-se num percurso expositivo circular e investiga amplamente as linhas de pensamento e de ativismo da obra de Durham com uma pluralidade de obras, documentação e interpretação. Esta exposição, baseada numa investigação aprofundada, é o resultado da experiência da curadora Kathryn Weir (também diretora artística do Museu Madre) sobre a obra do artista: textos analíticos ilustram cada seção da exposição e as obras individuais[2] e constituem um significativo enquadramento teórico, fundamental para compreender a multiplicidade e a liberdade do pensamento e da expressão criativa de Jimmie Durham.
Durham afirmou: “O meu trabalho tem por base a noção de ciência como curiosidade, enquanto nova forma de ver as coisas, uma investigação sem preconceitos que leva à mudança e à inovação. Para mim, é isso que a ciência significa: a ausência de ideias predefinidas, a aceitação da descoberta, uma visão inesperada da realidade.”
A exposição destaca a importante voz do artista no repensar da perpetuação de estruturas identitárias redutoras, especialmente através da sua representação visual no cânone europeu. Durham trabalhou com o modelo histórico de exposição museológica, do qual se apropriou e desconstruiu com humor, sem deixar de evidenciar a devastação associada à expansão e hegemonia imperialista europeia, para a qual a museologia foi um importante instrumento. Mostrou como os interesses do capital manipularam as construções identitárias da “minoria” dos índios americanos, subordinando-os e destituindo-os da terra e da ancestralidade.
A exposição apresenta trabalhos iniciais como On loan from the Museum of the American Indian (1985), Pocahontas’ Underwear (1985), onde parodia a suposta autenticidade de símbolos visuais politicamente encenados para reforçar identidades, nações, grupos étnicos e seus pertences artificialmente definidos. The Indian Family (Frontal View) situa o artista numa genealogia indiana a partir de fotografias encontradas. Um trabalho mais recente, The History of Europe (2012), apresenta a Europa como uma ficção geopolítica, reveladora das incoerências da transmissão histórica de informação.
Desenvolveu múltiplas colaborações e trabalhos de autoria comum com a sua companheira de sempre, a artista brasileira Maria Thereza Alves. Entre estas, Museum of European Normality (2008), incluída na exposição Madre, atira um “olhar etnológico” invertido sobre a Europa e sobre a “identidade europeia.”
A exposição, que inclui várias tipologias de obras, aborda as fronteiras vivas e flexíveis entre seres antropomórficos, animais e rituais no trabalho de Durham, mas também é preenchida por palavras (desenhadas, cantadas, escritas à mão, faladas), descontextualizadas e depois ressignificadas pelo artista no seu trabalho multifacetado.
Também a arquitetura é problematizada na exposição no Madre: estruturas construídas, associadas historicamente à dominação, são desmonumentalizadas – arcos, tubos, a gargouille, vigas de sustentação são transformados em formas permutáveis e versáteis para desmaterializar a arquitetura e, com ela, a sua herança opressiva e condicionante. Neste contexto, Durham introduziu a noção de Architexture (1994). O termo pode lembrar a Archi-ecriture de Jacques Derrida, tendo em conta a desconstrução do logocentrismo ocidental e a sua origem autoritária para a diversificação das identidades (Jacques Derrida, Signature Event Context, 1972).
Esta exposição que abarca uma vida inteira no Madre termina (e com ela meditamos sobre a recente morte do artista) com uma atualização metafísica da sua presença, mediante uma série de obras simbólicas: o poema inédito Now escrito por Jimmie Durham em resposta a um pedido de Kathryn Weir em Nápoles em 2020, a instalação de pedra desmaterializada em A Cloud e uma espécie de museu permeável – uma secretária de escola primária com uma caixa onde o visitante pode depositar as suas relíquias e pensamentos[3].
[1]Perry Henzel (realizador), The Harder They Come, 1972, 106′.
[2] A visita completa à exposição, sala a sala, está disponível online em www.madrenapoli.it/en/exhibition/jimmie-durham-humanity-is-not-a-completed-project/)
[3]A Galeria Módulo, em Lisboa, recebeu (1995) a primeira exposição individual de Jimmie Durham em Portugal, intitulada Brief History of Portugal. Em 2019/2020, Delfim Sardo comissariou uma segunda exposição individual na Culturgest Porto, ‘Do you say that I am lying?’, concebida em torno do livro de José Saramago ‘O Ano da Morte de Ricardo Reis‘ (considerado pelo artista uma referência significativa), incluindo citações datilografadas ou manuscritas da obra, incorporadas pelo artista em cada peça.