Ragnar Kjartansson – não sofra mais no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova
Elevando-se no horizonte da cidade de Coimbra, instalada na torre norte do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, observamos a enorme peça de luz vermelha com a inscrição não sofra mais. A intervenção, que dá nome à exposição, é uma das obras inéditas do artista islandês Ragnar Kjartansson (1976) cujo trabalho se expõe pela primeira vez em Portugal. Inspirada no slogan dos rebuçados Dr. Bayard que o artista conheceu numa visita a Portugal, a peça– assim como o desenho a aguarela que lhe serviu de inspiração e que integra a exposição – funciona enquanto metáfora de um convite ao confronto com a dor e à sua solução, transportando-nos para as ambiguidades da história antiga e atual do Mosteiro – da vida de sacrifício, clausura e sofrimento das clarissas que nele habitavam, à situação atual do edifício. Integrando a programação de Anozero – Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, que nos anos intercalares organiza o solo show de um artista de dimensão internacional, não sofra mais dá-nos a conhecer a prática de um artista multidisciplinar cujas obras adquirem uma nova leitura e dimensão no ambiente monástico do edifício setecentista de Santa Clara-a-Nova, marcado pela arquitetura barroca, pelo sentimento religioso, militar e pelo abandono. Inspirado pelo conceito Gesarntkunstwerk, Kjartansson aborda a arte como lugar de experimentação na criação de um corpo de trabalho, que tendo como referências a história do cinema, do teatro, cultura visual e literatura, incorpora médiuns diversos – desenho, pintura, vídeo, performance e música – na criação de experiências sensoriais carregadas de emoções, em que o fingimento e a encenação são ferramentas essenciais.
Ao longo da exposição confrontamo-nos com a importância do diálogo que Kjartansson estabelece entre as suas obras e a arquitetura do espaço, através de questões às quais responde com preposições artísticas, envolvendo o espectador num jogo de descobertas constantes, numa procura por nexos e correlações. A este prepósito e a partir de um dos capítulos da história do edifício, observamos a obra de entrada, Me and my Mother (2000, 2005, 20010, 2015, 2020) estrategicamente colocada junto à roda dos enjeitados, onde – num ato de amor ou de rejeição materna – os recém-nascidos eram entregues às entidades religiosas para serem cuidados. Descrevendo a relação tensa e complexa que o ser humano tem com a figura materna, observamos num plano fixo e sem narrativa, Ragnar e a sua mãe- uma conhecida atriz islandesa-de pé, lado a lado e numa pose rígida, ambos fitando a câmara em silêncio, até que a mãe começa a cuspir de forma sistemática na cara impávida do filho, numa ação que se repete entre pausas tensas. Humorística, absurda e violenta, a obra revela-nos a cumplicidade entre ambos, a intimidade e confiança mútua, num trabalho colaborativo que se tem vindo a repetir a cada cinco anos. Como um ritual, um retrato de família que testemunha a passagem do tempo, Me and my Mother revela-nos o interesse do artista na fusão entre realidade e ficção, na evocação de um memento mori rebelde e expressão de um amor filial que se perde nas palavras. A atração do artista pela ideia de repetição, enquanto dispositivo que abre possibilidades espaciais e temporais, capaz de transformar algo que é performativo – seja a repetição de um gesto ou a simples frase de uma canção- numa obra de arte, acompanhar-nos-á ao longo da exposição. No piso de entrada, deixamo-nos envolver pelo canto celestial que, potenciando o ambiente transcendental do Mosteiro, conduz o visitante ao longo do extenso corredor, mergulhando-o numa experiência performativa, intimista e imersiva a partir da vídeoinstalação Song, 2011. Baseada na performance de três semanas de Kjartansson no Hall of Sculpture do Carnegie Museum of Art’s, Song apresenta as três sobrinhas do artista interpretando, durante seis horas contínuas, the weight of the world is love, canção inspirada no poema de Allen Ginsberg. Ocupando o centro da ação, dispostas num pedestal forrado a cetim azul, as protagonistas incorporam ideais clássicos e contemporâneos de beleza, ao executarem rituais femininos à medida que repetem infinitamente a letra, como se de uma oração se tratasse. A câmara, que circula lentamente, contribui para a repetição hipnótica e misteriosa deste quadro imaginado e atemporal, em que esculturas antigas de modelos neoclássicos assistem, quais espectadores, ao espetáculo de suavidade e feminilidade de um hino hipnótico à beleza, ao sublime e ao amor.
As referências musicais são uma constante na prática artística de Ragnar, a este propósito destaquemos Nocturne, 2023, obra inédita inspirada e realizada no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, na qual interpreta em loop e com uma guitarra Take Me, do cantor e compositor country, George Jones. Na pequena e secreta capela do mosteiro, rodeado de figuras religiosas em alto relevo degradadas pelo tempo e abandono, observamos a performance a solo do artista no vídeo de dois canais, dispostos frente a frente em dois retábulos do oratório. Embrenhados pela aura misteriosa do espaço, deixamo-nos guiar pela imagem (des)sacralizada do artista e pelo poder de devoção e desejo de salvação da prece que entoa: Take me to your darkest room/Close every window and bolt every door/The very first moment I heard your voice/I’d be in darkeness no more. Dramatismo e carga sentimental que reencontramos em The Night We Went to That Club, 2023, pintura a aguarela sobre papel, concebida para a exposição e inspirada no Hotel Oslo da cidade de Coimbra, vivência que materializa no trabalho. Como uma colagem na parede, cobrindo parte dos azulejos portugueses, a pintura onde se lê a inscrição, as noites no Hotel Oslo, revela-nos o mistério e a solidão do céu noturno da cidade, refletindo sentimentos de melancolia, desejo e saudade. A mesma saudade e anseio que reencontramos no título da obra Nur wer die Sehnsucht kennt, 2015-2023, em homenagem ao poema de Johann Wolfgang von Goethe. Como uma extensão da pintura, penhascos rochosos cobertos de neve erguem-se do chão, conduzindo o visitante a deslocar-se por entre os mesmos, convidando-o a uma interação. Caminhando por entre a mise en scène de Nur wer die Sehnsucht kennt, no espaço que antecede o antigo refeitório do mosteiro, a paisagem montanhosa revela-se um cenário de teatro, em que a evocação do romantismo e natureza pastoral das pinturas contrasta com o sistema de construção de cada estrutura, numa oposição entre a beleza do ideal e a aspereza da realidade.
Envoltos na escuridão que domina o espaço do antigo refeitório do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, mergulhamos na experiência performativa e imersiva de longa duração proporcionada pela videoinstalação musical The Visitors, 2012. Composta por nove canais, que dispostos à volta do espaço tornam-se visíveis ao visitante de um único ponto, a instalação afirma-se enquanto retrato musical, simultaneamente melancólico e alegre. Gravada na propriedade histórica de Rokeby Farm (estado de Nova Iorque), observamos em cada canal uma divisão diferente da casa onde cada músico toca um instrumento, sendo somente na sincronização dos nove canais que as vozes e os instrumentos se fundem numa harmoniosa orquestração. Hino ao amor romântico e à sua dissolução, à saudade e à alegria do reencontro, The Visitors, numa transição entre performance, música e filme – os campos inter-relacionados da ambiciosa prática artística de Kjartansson – torna o espectador participante do evento e da intimidade dos momentos vivenciados.
No primeiro piso da exposição Kjartansson apresenta-nos God, 2007, opus à tristeza e ao desgosto. Evocando o espírito Hollywoodesco, os estereótipos e clichés de uma era esplendorosa e de artifícios, o artista – qual Frank Sinatra ou Nat King Cole – atua de smoking preto como vocalista de uma pequena orquestra. Os gestos e poses estudadas que interpreta, revelam-nos humor e ironia, enquanto entoa repetidamente durante trinta minutos Sorrow conquers happiness. Como um transe hipnótico, a mensagem melancólica transmitida entre sons delicados e explosões instrumentais, transporta-nos para um outro tempo, para o que contribui o aspecto cenográfico da obra: a voluptuosa cortina de cetim rosa da videoinstalação rompe a própria tela, estendendo-se ao espaço expositivo, evolvendo-o. O lamento e a tristeza voltam a ser cantadas na obra que encerra a exposição, A Lot of Sorrow, 2013-14, performance gravada ao vivo com a banda The National que toca em loop, ao longo de seis horas, a canção Sorrow. Demonstrando a perseverança, força física e psicológica dos membros da banda, o vídeo duracional revela ao espectador diferentes estados de energia, emoção, exaustão e alívio dos intervenientes ao longo da performance em que a própria canção se altera, embora o som original seja sempre reconhecido.
A ironia e o humor, o sofrimento e a felicidade, a melancolia, o desconforto e a resistência conduzem-nos ao longo da exposição de um artista cuja essência se centra na tradição da linguagem teatral, na música, na repetição e na performance. Afirmar uma prática regular da arte contemporânea na cidade de Coimbra, tem sido um dos objetivos do Anozero, que com a exposição não sofra mais de Ragnar Kjartansson a inscreve no circuito internacional.
não sofra mais de Ragnar Kjartansson, patente até 16 de julho, no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, Coimbra.