Na Appleton: uma neblina de fumo sob uma onda de calor
Dois lanços de escada desencontrados separam Haze, de Vera Mota, de Primos de João Penalva. A Appleton Associação Cultural caracteriza-se pela simultânea dualidade, entre o que está no rés-do-chão (SQUARE) e o que está abaixo, na cave (BOX).
Gaston Bachelard (“La poétique de l’espace”, 1957) lembra-nos que o rés-do-chão é a praça do quotidiano e do pragmatismo da vida, como adiante veremos. Já a cave sugere-nos o espaço misterioso da morada, a escada que desce lentamente à luz da gambiarra e é lugar por excelência para a irracionalidade; exagerando medos e anseios. Não será também a cave o lugar para a experimentação?
Uma neblina de fumo
Haze de Vera Mota é uma experiência plena e sublime de compreensão dos Açores. A bruma que enche o subterrâneo da Appleton. A mesma neblina que envolve o arquipélago, e que na exposição assume o estado sólido, ou concreto da pedra: o basalto. E talvez seja mais correto referir-nos ao “estado” como a um processo entre a alquimia e a transmutação. A rocha vulcânica é o tema escolhido pela artista para integrar o ciclo Get Back, comemorativo dos 16 anos de existência da Appleton, mas é igualmente objeto de exploração, investigação científica e tecnológica – ou apenas a curiosidade pela física, química e estética das coisas.
O basalto, que se forma com o arrefecimento de lava fundida, é uma das pedras mais comuns na superfície terrestre. Caracteriza-se pela robustez, resistência e cor negro baço, mas a artista decompõe o mineral, adicionando novas linhas à sua taxonomia. Instala na sala um laboratório para transformação da matéria bruta numa imaterialidade que escapa ao tato. A metamorfose é confusa e inquietante. A pedra é desfiada em longos e sedosos fios. Não são crinas, nem exatamente cabelos, embora aparente a mesma suavidade. Os plintos metálicos (e não é um acaso o uso do ferro, tanto pelo brilho, como por fazer parte da composição do basalto), elevam as fibras, dando corpo a manequins estáticos, embora voláteis, sobre o plateau branco. Vera Mota deixa-nos perdidos no nevoeiro tenso entre o natural e a “artificialização” do natural, entre o indelével peso da rocha e os feixes de sombra capilares da fibra (de basalto). Subimos de volta os degraus, curiosos e mais conscientes da raridade das matérias. Sabemos agora que o basalto pode tomar outras formas, menos inertes.
Uma onda de calor
Primos de João Penalva, mantém a narrativa simples. Uma projeção, meia dúzia de cadeiras e som. A sala é escura, deve permanecer escura e em silêncio. Não é uma sala de cinema, mas a atmosfera aproxima-nos. De facto, a obra de João Penalva tem essa ligação firme com a narrativa cinematográfica, com os enquadramentos close-up e os crops, construindo diálogos. Guiões com falas imaginadas e estórias de pessoas reais, com quem nos cruzamos. Penalva movimenta-se confortável nessa promiscuidade entre o texto jornalístico e documental e o storyboard escrito, muitas vezes assumindo um diário íntimo.
Não podemos advertir para a não utilização de dispositivos móveis ou filmagens na sala, porque estaríamos a invalidar a seguinte projeção.
Primos, mostra-nos uma cena com dois rapazes deitados no chão. Aparentemente os jovens passam pelas brasas. Em segundo plano, uma ventoinha não acompanha os barulhos e vozes de fundo. A sensação térmica é de 40 graus, lá fora na cidade, não muito diferente da imagem, está abafado. Cedo percebemos que o frame não se vai movimentar, nem as pás helicoidais da ventoinha, nem os dois primos. A imagem é na verdade um memento que Penalva captou usando um smartphone comum (lê-se na folha de sala, texto de Carlos Vargas). O artista congelou uma longa narrativa sonora, algures num distante oriente, onde se ouvem estórias de pessoas comuns “em estrangeiro”. Aqueles rapazes estão realmente a dormir? Perguntamos a certa altura. E porquê no chão?
O chão da cena é cimento afagado, tal como o pavimento da Appleton. O chão é também o plano de Yasujirō Ozu, estável e alinhado ao centro. Já a cadeira onde nos sentamos, é a estrutura ocidental. Tudo isto nos envolve na cena, mas como voyeurs indiscretos, que estão de fora, são estranhos. Mantemos o papel de narrador espectador, na expectativa de entender a ação. Uma vez mais, Penalva deixa em aberto a ficção, como um jogo de preenchimento de palavras, mesclando a realidade e a ilusão, o leitor indiscreto e o espectador atento.
Haze de Vera Mota integra o ciclo de exposições Get Back com curadoria de Carolina Trigueiros, a segunda exposição da artista para ver na BOX até dia 5 de julho. Primos de João Penalva pode ser visitada até dia 15 de julho.