Matt Mullican: entre a atividade dos sentidos e a sonolência
Ao criar a linguagem distinguimo-nos dos demais seres vivos, no que diz respeito aos modos e meios de comunicar. Inventámos a linguagem que substituiu os gestos e os silêncios por vocabulário. Passámos a descrever, por consequência a representar, a realidade através de palavras e complexas construções semânticas que cedo evoluíram para signos, símbolos, imagens e pictogramas. Mas estamos cientes que apenas parte da realidade é verbalizada. A descrição de um objeto, por muito fiel que seja às suas características, não o substitui na íntegra, não é o objeto, é uma das múltiplas possibilidades de representação.
As manifestações artísticas surgem como resposta mais ou menos consensual a estes lapsus linguae, ou da linguagem, do linguajar, permitindo um retorno à não-fala para falar da realidade (a comunicação entre a obra e o sujeito nunca é integralmente universal porque depois há a cultura, e tudo o que ela significa / constrói no sujeito, mas deixemos esse tema por agora). É dentro desta esfera que se movimenta Matt Mullican, dedicando parte da sua exploração artística às especificidades da linguagem e à sua universalidade visual, através da criação de um alfabeto próprio de símbolos e signos.
Na Galeria Cristina Guerra – Contemporary Art, Before Breakfast (2023), a série de trinta e duas imagens, empresta o título à exposição mais recente do artista. Em jejum, no ritual inerente à rotina entre o acordar e o café, o artista navega num limbo de imagens e objetos da intimidade. Na grelha de fotografias, o narrador é o artista e participa numa cena pré-pequeno almoço. Vemos o que Mullican vê, na primeira pessoa, ou o que ele quer que vejamos. Esse primeiro plano suscita inquietação no observador que afinal não sabe se controla a ação, confundido real com virtual. O artista parece querer lembrar-nos a omnisciência tecnológica de uma janela indiscreta versus uma câmara de filmar que se observam mutuamente, em continuidade.
A realidade virtual é inclusive tratada na peça Database (2019). Um modelo impresso em 3D que se assemelha a uma estrutura medieval do esqueleto de um edifício. Afinal o que é a arquitetura senão também uma representação simbólica de um legado civilizacional, de que a linguagem faz parte e a bandeira é bandeira. E não uso esta ponte de modo inocente. A série de peças retangulares em ferro ( 8 Chapters of the Cosmology; City Plan; That Person and the Cosmology; 8 Chapters of the Cosmology and 8 Stages of Mind; The Cosmology; 2009) dispostas ao longo da galeria são exemplos da sobreposição de malhas e traçados urbanos com um código de geometrias euclidianas de círculos e meias luas, lembrando-nos um calendário. As chapas imprimem peso e perenidade, que diz respeito ao mundado e também ao chão e ao asfalto citadino. A peça chave, pela sua evidente escala, complementa o tríptico: a bandeira. Por definição, a bandeira é imediatamente associada ao símbolo clássico de uma nação. Uma nação que está circunscrita a um território, a uma linha invisível ou limite geográfico. A bandeira reclinada de Mullican é um círculo branco, sobre duas metades, uma vermelha e uma negra. Para o artista estas são as cores do sujeito (vermelho) no encontro com o mundo (preto e branco). A posição relativa da bandeira, não hasteada, mas encostada e vincada pelo chão, sugere a interseção de dois diedros, sem linha do horizonte, mas com profundidade – uma vez mais espaço, uma vez mais arquitetura.
No entanto, o que se deve sublinhar em “antes do pequeno almoço” é o conjunto de pequenas aguarelas sobre painéis de madeira. Desenhos que exploram a matéria e a materialidade do suporte, revelando mais do que o decalque dos veios e sulcos, a profundidade do olhar e do que se perceciona. Neste meio piso da galeria, o artista esboça uma linguagem que não é alfanumérica, mas cosmológica (centrada na forma circular) e semiótica. As pinturas ora oscilam entre as metáforas de pequenos planetas, pequenos mundos, o céu (céus / paraíso), o inferno, ora entre a paleta de sombras (gradientes de preto) e as cores primárias.
O que são estas imagens? Podem ser o que a perceção nos dita, ou a cultura da linguagem nos ensinou, que após indecisão se tornam símbolos sumários da realidade. Podem somente ser a libertação desses significados verbais, para se tornarem pedaços de paisagens do estado latente entre o sono e o acordar, quando a pálpebra abre sensível à luz, e a pupila dilata exposta ao mundo. Este talvez seja o convite de Mullican: um deambular meio sonâmbulo, meio acordado pelo mundo matinal, no limite um ensaio sobre o olhar.
Before Breakfast, a sexta exposição de Matt Mullican na Galeria Cristina Guerra – Contemporary Art pode ser visitada até 1 de julho.