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Trabalhos de campo

A personagem de Bergotte em À la Recherche du Temps Perdu é uma das muitas sobre as quais o narrador se detém com a curiosidade que o caracteriza. A certa altura do segundo livro, A Prisoneira, aquele homem abatido por uma espécie de doença permanente contraria as ordens dos médicos e sai de casa para ver um velho conhecido e seu favorito quadro de Vermeer, “Vista de Delft”. O motivo que o impele é a confrontação da sua memória do quadro com a observação de um crítico que, nele, vira “si bien peint, qu’il était, si on le regardait seul, comme une précieuse œuvre d’art chinoise”, um “petit pan de mur jaune” (“um pequeno painel amarelo” – “tão bem pintado, que seria, se olhássemos só para ele, como uma maravilhosa obra de arte chinesa”). Tal como outros motivos na obra de Marcel Proust, este pormenor amarelo presta-se ao alargamento interpretativo e, por assim dizer, contamina a narrativa de maneira inesperada e vasta – tanto mais vasta quanto o leitor aceitar a sua relevância.

A cor é poderosa: o amarelo, mesmo se num pormenor aparentemente fácil de esquecer, domina uma atmosfera e propaga-se nas sensações do contacto com a arte. (Pode ser, sugere a narrativa de Proust, fatal.) Simboliza o desafio e a aceitação do jogo – o mesmo desafio e uma semelhante ideia que se propõe no título da exposição que pode ser vista no espaço da Alfaia até ao início de julho.

A mostra que está patente no nº 18 da rua Brites d’Almeida, em Loulé, designa-se “pedra papel ou tesoura” e assume o caráter lúdico da arte como sinal de resistência e libertação. A resistência que se deve ultrapassar para aceitar um desafio; a libertação quando se decide aceitá-lo. Há um gesto pictórico da curadora, Rita Anuar (n. 1994), a dominar o espaço – na parede mais ao fundo, quatro barras amarelas percorrem na horizontal o fundo da divisão. Recortam a visão da parede, interferem com as três peças penduradas (da esquerda para a direita, uma tela em amarelo mais escuro, de Gil Ferrão [n. 1996], sobre a qual se fixam uma pena de badminton e uma seta de jogar; outra tela, mais pequena, onde se desenha a várias cores uma paisagem encimada pelo nome ARTFORUM – brincadeira de Felix Vong [leia-se a sua entrevista à Umbigo Magazine, em abril último] com a capa de uma revista de arte; e um gancho amarelo que segura uma argola em tom de verde, outra obra de Ferrão) e remetem o visitante, oxalá saudável, para o jogo dos enquadramentos e das relações não explícitas.

Outra das peças que parecem assumir de maneira evidente o sinal do lúdico incita a que a interação com os visitantes vá além da observação passiva: sobre uma mesa dispõe-se um colorido tabuleiro de jogo, casas numeradas e várias cartas diferentes que podem ser manuseadas e colocadas, para se jogar em modo solitário ou em grupo. Na parede junto à mesa, as instruções dão ordens como “Confirmar a competência deste jogo”, num convite ao visitante “desconfiado” para aceitar a suspeita e trabalhar nesse modo perante a arte – questionar, interrogar, não tomar como certo nada do que se apresenta, é afinal, a modalidade da arte que se vê a si mesma enquanto jogo. Nem mesmo o lance é feito por elementos fixos: as instruções estabelecem que se pode usar moedas, búzios, pedras, ou dados, o que remete para usos mais sérios e pelo menos tão antigos, como as artes divinatórias do I-Ching. O Gabinete Dourado, pensado e proposto pela dupla Luísa Abreu e Maria Bernardino, que se autodefine como “Didáticas Obscuras”, compreende o conjunto: tabuleiro, cartas, mesa, instruções – e, em última análise, os participantes que se antecipam. E espera que “o acaso [possa] ser feliz coincidência e não obra do destino”.

A alegria da brincadeira é um lugar de intimidade; aceitar o jogo acarreta uma entrega de si – é o que se depreende da possibilidade de folhear os cadernos de Jiôn Kiim (n. 1982), nascida em Busan, na Coreia do Sul, que vive no Porto desde 2017. Não se trata de meros borrões de aguarela, mas de uma espécie de diário de bordo cujo suporte são cadernos adquiridos no Porto: falam, por isso, do ajustamento a um lugar, da procura de uma identidade feita de atmosferas de antigas mercearias de bairro, da superfície rugosa de um papel que é como uma cidade nova sobre a qual se experimentam e se ajustam as sensações como na folha se testa a cor dos pinceis. Na sala, dois plintos e uma mesa de cavaletes suportam três cadernos da artista e convidam a espreitar esse mundo interno, o tatear, o sussurro de uma linguagem diferente. O caderno aberto sobre a mesa – distante dos plintos – está acompanhado de pequenas estatuetas em barro ou cerâmica colorida, brinquedos esculpidos com que se deveria poder brincar (propostas de Sara e Tralha [1995]): é um avião? é uma faca de barrar? é um tubarão? é uma palmeira? Viajam no caderno aberto os brinquedos, que convidam – não se vislumbra por perto nenhum aviso a dizer “É proibido tocar nas peças”. Aliás, anda pelo chão uma bola a pedir para ser chutada ou atirada à parede. O jogo é perigoso para a arte? Se alguém entrar nele e lançar a bola ao colorido das pranchas encostadas à parede da entrada (também de Kiim), destruirá a ordem, o alinhamento da madeira erguida do chão. Mas consumirá a brincadeira e poderá mesmo fazer de conta que entrou para uma máquina de flippers: derrubadas as pranchas, encontra um tubo saído na vertical desde o chão, enfeitado com desenhos, pedaços de tecido em renda e, na base, os contornos de figuras meio humanas meio animais (a rimar com outra, na parede perto). São as peças de outro jogador, Hugo Brazão (n. 1989). A cabeça a andar à roda é a de uma Alice, que entrou no mundo ao contrário e surge através das cores e dos desenhos sobrepostos de Madalena Anjos. É brincadeira, borboleta. É brincadeira transparente, lindo cogumelo – é brincadeira, podes imaginar que o os limites do papel se estendem para além do recorte e completar o que falta. Em vez de espelho, as sobreposições oferecem uma translucidez de janela.

Há outros elementos, diria mais tradicionais, em pedra papel ou tesoura – afinal, o nome de uma brincadeira quase universal: as telas coloridas, em tamanhos diferentes, de Bárbara Faden (n. 1998), de Luís Rocha (n. 1995) ou da paulistana Yasmin Guimarães (n. 1991). A disposição e o diálogo que criam com as restantes peças fazem com que, por um lado, se unam à ideia de jogo (o pequeno quadro de Guimarães estabiliza a exteriorização das figuras de Oliveira, por exemplo); e, por outro, resistam a um fingimento absoluto (na tela de Faden, jogam com a parede de riscas amarelas amarelos pirilampos, à frente de uma figura humana de costas [tem asas azuis? é um anjo?], que assim desafia a autoridade do frontal, do rosto), inserindo-se na convenção do enquadramento. Cada peça articula-se com as outras no entretenimento de lhes encontrar proximidades: as pranchas verticais de Kiim com o tubo enfeitado de Brazão e as tiras de cores nos dois quadros (óleo a mostrar néon?) de Rocha; o pouso horizontal dos cadernos, das figurinhas esculpidas, dos suportes que se projetam das paredes com o amarelo que Anuar lançou: queres brincar comigo?

Esta exposição é dinâmica, torna-se viva a cada momento – assim se afasta o enguiço de Bergotte: no jogo, jamais haverá mal de gota ou batatas pouco cozinhadas que assustem quem quiser ir confirmar a cor das manchas no pequeno painel daquele quadro que adora.

pedra papel ou tesoura está na galeria da Alfaia, em Loulé, até dia 1 de julho.

Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.

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