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De ponta cabeça no Ateliê do Rego

De ponta cabeça ou de cabeça para baixo e pernas para o ar significam o mesmo, o que separa as duas expressões é o país de que são originais. O mesmo acontece com Sandra Cinto, Albano Afonso, Rita Gaspar Vieira e Nuno Sousa Vieira, todos artistas, separados pelo lugar onde nasceram. No Ateliê do Rego, cruzam-se quatro caminhos e dois universos — Brasil e Portugal —, numa exposição coletiva que contou com a curadoria de Ricardo Escarduça.

A exposição parte de alianças afetivas, onde os artistas do Brasil, Sandra Cinto e Albano Afonso, são convidados por Rita Gaspar Vieira e Nuno Sousa Vieira a fazer uma exposição em Portugal. De ponta cabeça parte, portanto, dos dois artistas convidados, e as obras de Rita e Nuno, foram escolhidas a partir do que Sandra Cinto e Albano Afonso decidiram expor. O lugar onde acontece a exposição é o ateliê que Rita Gaspar Vieira e Nuno Sousa Vieira partilham, desafiando de imediato o paradigma de mostra de arte contemporânea. É um espaço amigo, e uma exposição entre amigos, facto explicitamente anunciado na folha de sala da exposição.

A influência da gravura japonesa destaca-se nos trabalhos de Sandra Cinto, onde a minuciosidade, o vazio, e as linhas finas e sinuosas, se desenham tanto sobre o papel como o tecido. Por um lado, vemos dois desenhos a tinta-da-china sobre papel japonês, onde as linhas formam composições que lembram ondas e remoinhos de um mar agitado. Nos encontros das linhas o negro da tinta intensifica-se, criando nestas duas pequenas composições, pontos de magnetismo que direcionam o olhar para o movimento do desenho. Já em Peça de resistência (2023) o trabalho é feito sobre tecidos japoneses antigos, em padrões azuis-escuros, bordados com linhas que remetem novamente para remoinhos, ou até mesmo um céu estrelado. A resistência desta peça encontra-se nos vários remendos que vemos no drapeado de tecidos, lembrando uma outra técnica japonesa (Kintsugi), onde o ouro ou a prata são utilizados para reparar peças em cerâmica. Este espelho entre o mar e o céu desdobra-se para a obra Japonismo (céu e mar), com uma composição semelhante à anterior, mas que aqui é feita sobre papéis japoneses.

O azul expande-se para a obra Sonho conflito (2023) de Rita Gaspar Vieira, onde sob três troncos de eucalipto pintados a azul, são pendurados trabalhos em papel de algodão manufaturados pela artista. As longas tiras de papel, apresentam manchas e impressões do lugar onde o papel foi trabalhado, mas também imprimem os meios com que o processo foi feito. O olhar reconhece os recortes de uma garrafa de água que estava na superfície onde o papel pousou. Esta é uma técnica recorrente no trabalho de Rita Gaspar Vieira, que requer o uso de água para a sua concretização. A artista reflete sobre a dualidade e conflitos que surgem da sua prática artística, mencionando simultaneamente problemas ecológicos que resultam da plantação de eucalipto, massivamente plantado para produzir papel. Na possibilidade do encontro de uma solução ecológica para a produção do papel, surge outro problema, o consumo de água. O azul como sufoco da madeira de eucalipto, mas também como céu e sonho, transmitem o lugar utópico onde se situa a obra da artista. Nesta consciência e desejo de mostrar várias perspetivas, o trabalho de Rita Gaspar Vieira mostra-se provocatório, onde fica impossível olhar o papel sem deixar de ver o plástico. Esta condição torna-se ainda mais explícita na obra Avessa (2015) onde a artista através do processo de construção de papel, imprime as marcas de um saco de plástico.

Nuno Sousa Vieira mostra pela primeira vez uma obra de 1993 Azul em fuga / Lastro, continuando a narrativa desta cor como espaço de produção que aponta para o sonho, a água e a fluidez. Este trabalho é composto por duas peças realizadas em aguarelas, com um azul que inunda quase na totalidade a superfície da composição. Nuno Sousa Vieira interessa-se por várias configurações que um só objeto consegue formar. Nesta obra não é diferente, a sua apresentação contém várias hipóteses, a frente e o verso podem tomar o lugar um do outro, e o que está atrás pode vir para a luz, ou vice-versa. Nesta mesma lógica, surge Draw Main Window (2014) uma escultura site-specific realizada para encaixar nas janelas da galeria Espacio Olvera, em Sevilha, onde foi inicialmente exposta. A obra é feita com vários espelhos, vidros e dobradiças e possibilitam alterar a forma como a escultura se apresenta, e consequentemente a perspetiva do que vemos ao olhar pela janela. Assumindo a vista como uma mais-valia económica, capaz de alterar substancialmente os preços de uma habitação, Nuno Sousa Vieira inverte a lógica capitalista criando a possibilidade de, por exemplo, olhar o céu num lugar onde antes era impossível. Agora, para o contexto desta exposição, a obra sai da janela e desdobra-se no chão, fraturando as perspetivas do que vemos e de como nos vemos. Já os vidros que compõem a obra, faziam parte do seu ateliê em Leiria, e apresentam marcas de sujidade, agindo por isso como uma lente que expõe as singularidades de um lugar específico.

A fotografia insere-se no trabalho artístico de Albano Afonso como uma ferramenta que serve para refletir sobre o tempo e as perceções que temos dele. Espaço a – abstrato – RGB (2019), é composta por duas fotografias tiradas em frente a espelhos, que resultam da sobreposição de vários filtros de cores primárias. É o resultado da captura de um momento que recorre a várias camadas de cor que geram outras cores, mas que também as anulam, criando espaços negros nas suas intersecções. Albano Afonso cria duas imagens que desafiam as perceções tradicionais de cor e realidade, proporcionando uma experiência visual que pode evocar uma sensação de tempo fluído, não linear. A fotografia assume uma nova forma quando abandona a parede e é transferida para tecidos translúcidos suspensos ao teto do ateliê. Nesta metamorfose da obra, a fotografia liberta-se, passando para um meio tridimensional e imersivo, que convida à contemplação da fluidez e complexidade do tempo.

Talvez o que aproxime as obras de cada um dos artistas, sejam as camadas e desdobramentos que os seus trabalhos podem seguir. Entre o gesto demorado do desenho, o processo de manufatura de papel, a fragmentação da realidade e as várias camadas de tempo, De ponta cabeça é um encontro artístico que faz acontecer confrontos plásticos. E apesar destes contrastes, é nas camadas de memória, de tempo e de lugares que reconhecemos a harmonia e cumplicidade que nasce do diálogo entre os artistas.

De ponta cabeça está patente até ao dia 30 de junho, e pode ser visitada mediante marcação.

Laurinda Branquinho (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

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