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Para voltar a sonhar ou o frescor violeta de Adriana Proganó

Da calçada do Largo Hintze Ribeiro, a poucos minutos a pé do Rato, já se espreita a entrada de um terreno atípico, anunciado por uma pequena carpete colorida que interrompe a monotonia cinza sob os nossos pés. Deixa-se para trás a pedra-ferro, abandona-se o solo português: do outro lado do portal, está-se sobre outras bases, outro continente, outra terra. É certo que há épocas no ano “em que o chão é verde, outras amarelo, e depois castanho, ou negro” [1], começa por descrever José Saramago no seu romance fundamental, Levantado do Chão. “E também vermelho, em lugares, que é cor de barro ou sangue sangrado. Mas isso depende do que no chão se plantou e cultiva, ou ainda não, ou não já […]” [2]. Se a paisagem é aquilo que mais sobra no mundo, abundante em tempo, cores, caminhos, texturas e vidas, que sementes e princípios devem ser lavrados para se erigir um novo chão? Um chão, por exemplo, mais lilás que os jacarandás, tão sedutor como o crepúsculo, verdadeiramente propício ao desejo e ao sonho? Que criaturas seriam os seres autóctones deste território?

Embebida numa atmosfera arroxeada e fantástica, a 3+1 Arte Contemporânea torna-se a morada desta nova cosmologia, imaginada por Adriana Proganó. Na sua primeira exposição individual desde a mostra no maat – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, que lhe rendeu o Prémio EDP Novos Artistas 2022, a artista apresenta um conjunto de pinturas inéditas que nos convida a cumprimentar a serpente com um beijo, correr com as panteras, respirar com as raízes das árvores. A série revela-nos o seu traço habitual – eminentemente expressivo e espontâneo, com acabamentos “crus” e um característico toque de humor –, mas com uma nova, reforçada presença simbiótica de humanos e animais.

Na folha de sala de I kissed the snake hello, o crítico e curador Antonio Grulli é cirúrgico ao sugerir que, mais do que uma conciliação entre termos, as imagens de Proganó exprimem a tensão latente entre tudo aquilo que partilha a condição de “ser animado” numa natureza multifacetada – “[a] figura humana parece estar prestes a transformar-se numa pantera, ou numa árvore, ou parece ter acabado de nascer de uma folha (…)” [3]. Recordo-me do elogio de Bruno Latour à perspetiva da metaformose: “(…) estamos todos constantemente tentando evitar a inanimação ou a hiperanimação daqueles seres com quem trocamos de forma o tempo todo” [4].

Não à toa a própria forma do humano começa a tomar contornos distintos, quase como uma resposta à aquisição ou aprendizagem de novas habilidades. Neste novo chão, parece ser já possível uma comunicação direta entre criaturas que não utilizam, necessariamente, os mesmos códigos linguísticos – Cold soft swim with you (2023) e I breathe you, you breathe me (2023) são, de facto, sentenças endereçadas a alguém que possui iniciativa, agência, autonomia, escolha. Os bichos falam connosco; a seiva oferece-nos um abraço. O ritmo das relações passa a ser percebido como um fluxo em vez de uma cadeia, pelo que o dia e a noite deixam de marcar o tempo da vida e das coisas: Not day not night, an invisible space in time (2023).

Também o toque, nesta terra tão mais enrugada do que era o nosso mundo de superfícies polidas, parece atuar como um cordão umbilical nunca cortado. Em Leaf juice (2023), retrato de algum parente distante de Abaporu (1928) [5], vê-se que a pele – e, principalmente, as extremidades das mãos e dos pés, que agarram, beliscam ou arranham – enche-se de um calor vibrante e avermelhado, capaz de reconhecer, tacitamente, a intimidade de cada interação particular. A sensualidade dilui-se por todo o organismo, razão pela qual, neste mundo, não há genitais nem géneros. Para que serviriam? Para que servem?

Pelo estilo e pelo conteúdo, pelo significante e o significado, as criações de Adriana Proganó suscitam essa mesma inquietação infantil que nos torna mais curiosos e generosos em relação ao que está à nossa volta. Como quem dorme ao escutar uma fábula e acaba por sonhar com as imagens assombrosas deste universo inventado, experimentamos vaguear pelos caminhos sinuosos de I kissed the snake hello com atenção, cuidado, deslumbre e perguntas. Trocamos alguns olhares fortuitos com os nativos deste espaço. Temos medo e fascínio. Perseguimos o som do rio ao longe, em busca da fonte desta água. Já prestes a encontrá-la, acordamos. E, com alguma decepção, queremos que o real continue assim: um pouco menos cinza, um pouco mais violeta – a cor do ar fresco [6].

Até ao dia 24 de junho, porém, pode-se voltar a sonhar com I kissed the snake hello, na Galeria 3+1 Arte Contemporânea.

 

 

[1] Saramago, José. (1980). Levantado do Chão. Alfragide: Editorial Caminho, s/p. Versão disponibilizada online em <https://www.escolahenriquemedina.org/bibdigital/view/1394/Levantado%20do%20Chao%20-%20Jose%20Saramago.pdf>.

[2] Idem.

[3] Antonio Grulli na folha de sala da exposição.

[4] Latour, Bruno. “As fábulas científicas de uma La Fontaine empírica”. In: Despret, Vinciane. (2021). O que diriam os animais? São Paulo: Ubu Editora, p. 13.

[5] Obra de Tarsila do Amaral.

[6] Diz-se que Monet afirmou: “Eu finalmente descobri a verdadeira cor da atmosfera. É violeta. O ar fresco é violeta”.

Laila Algaves Nuñez (Rio de Janeiro, 1997) é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para a imaginação e o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH), colabora profissionalmente com iniciativas e instituições nacionais e internacionais, como a BoCA - Biennial of Contemporary Arts, o Futurama - Ecossistema Cultural e Artístico do Baixo Alentejo e, enquanto assistente de produção e criação de Rita Natálio, a Terra Batida.

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