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Caring is Sharing 2.0 at Arbag

“Os elementos essenciais da nossa aventura serão a coragem, a audácia e a rebelião.”

É um dos onze trechos do manifesto futurista de Marinetti (1876 – 1944), publicado em 1909 pelo jornal francês Le Figaro.  O manifesto serviu de impulso para a Caring is Sharing 2.0, que está patente no novo espaço independente Arbag, situado na rua de Buenos Aires, 7, no bairro Estrela, em Lisboa até 29 de junho.

Um arqueiro posiciona seu arco e flecha. O alvo não tem um nome, é desconhecido e pode ser imenso, como uma noite escura ou um céu azul num dia de primavera. Muitas coisas nesse mundo não têm nome; e muitas coisas, mesmo que tenham nome, nunca foram definidas. diz Susan Sontag (1933 – 2004) na introdução de seu ensaio Notes on Camp (1964) na qual vou abordar outros tópicos ao longo desse texto.

Caring is Sharing é a flecha lançada por Francisco Trêpa, que na sua segunda edição, convida a si e mais sete artistas: Ana Vidigal, Gabriel Junqueira, Henrique Tavares Ferreira, Isa Toledo, Joana Bastos, Joana Coelho e Mané Pacheco, para compor um jogo/diálogo entre artistas. Nesse desenfado proposto de artista para artista, os oito participantes são convocados a compartilhar um trabalho de suas respetivas autorias, logo após os seus nomes são colocados numa caixa no qual participam num grande sorteio. Cada um dos artistas retira um dos outros nomes que estão na roda e, assim, é instigado a criar outro trabalho que pode ser visto como resposta, incorporação, homenagem, adaptação ou até mesmo pirataria. Cada artista apresenta duas obras na presente exposição.

Siga o coelho e você estará envolvido nesse jogo. Assim como em Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, pseudónimo de Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), o Coelho Branco não orienta Alice, apenas indica o caminho para que ela tome as suas próprias decisões. A arte não se trata de um diálogo definitivo, mas sim de uma composição feita entre atitude, coragem e imaginação. Ao chegar à Arbag, sou enlaçado pelo aroma familiar do palo santo que circundava o espaço. Dessa maneira, senti-me convidado à conversa, como espectador. Vale ressaltar que, ao longo deste texto, muitas palavras estarão com aspas, pois, inicialmente, muitas coisas são singularmente pertencentes à estética Camp e o Camp geralmente vê as coisas entre aspas, por exemplo: não é uma lâmpada, mas sim uma “lâmpada”. (SONTAG, 1964)
Logo na entrada, em sintonia com o meu sentido olfativo, há uma banca de “cartões-postais”, Vidafólio Vidafolia, 2023 é o trabalho apresentado por Joana Bastos, onde fotografias são exibidas num “carrossel” que gira sobre uma caixa de papelão embrulhada com papel de presente que imita pedras, que, por sua vez, está sobre um banco de madeira. Ana Vidigal responde com amarrações de diversos tipos de objetos corriqueiros: souvenirs, bordados delicados sobre um pano, cartões-postais legítimos e outros itens. Além disso, homenageia Joana colocando como título dos trabalhos os nomes dos seus filhos: Leonor, Francisco e Mafalda.

O cheiro do palo santo vinha das louças loucas de Francisco Trêpa. A peça, que é sustentada pelo carimbo de um coelho, são pratos que passaram por gerações na sua família e carregam marcas do tempo. Além disso, há paisagens estampadas no prato, como a fonte de uma floresta e um mato australiano onde um canguru reside, Trêpa inseriu cerâmicas amórficas na porcelana, no qual uma delas segura o palo santo pela “boca”, finalizando a sua assemblage. O canguru saltou do prato e ganhou forma em crochê, que agora carrega na sua “bolsa” um guardanapo de linho resgatado do filtro da máquina de lavar. O salto do Kanga&Roo, 2023 foi a resposta de Isa Toledo. Ela, por sua vez, coloca uma camisa de linho branco bordada com nomes conhecidos de mulheres que marcaram a história do mundo ocidental. Por coincidência, quem retorna ao diálogo com Isa é Francisco Trêpa. Ele escolhe Susan Sontag, um dos nomes bordados por Toledo em Daughers of Gomorrah, 2023, e cria um “livro” em cerâmica vidrada: Susan Sontag – Notes of Camp, exposto em “prateleiras” fazendo relação com um “pinguim” que não ocupa a “prateleira” sugerida para ele, deixando um vazio, que se completa no chão.  Quando disse que, nesse diálogo, muitas palavras estariam entre aspas, deve-se ao facto de que ao discorrer sobre a estética Camp, Susan Sontag escreveu em sua décima nota: “Perceber o Camp em objetos e pessoas é entender que Ser é Representar um papel. É a maior extensão, em termos de sensibilidade, da metáfora da vida como teatro.”

Joana Coelho expõe Blood Bath, 2022 o suporte escolhido para apresentar o seu desenho, atribui-lhe a representação de um “caderno” ou “livro” sagrado, e Joana Bastos atribui-lhe uma homenagem duchampiana: uma forma de bolo circular com o um molde de um coelho ao centro (dizem que os românticos veem um coelho desenhado na lua quando está cheia) e, por fim, o título: Joana Coelho, 2023.

Na mesma sala onde Coelho expõe o seu desenho, uma colcha de cama flutua no ar, coisas estão espalhadas por cima dos retalhos, Domesticidade: A domesticidade começa na cama (Grande, tão grande quanto ele), 2023 é o trabalho de Henrique Tavares Ferreira, a organização e o caos estão expostos sobre a cama. Sonho e realidade, vida e morte, memória e esquecimento são costurados para compor a peça que flutua. Dessa forma, Gabriel Junqueira, responde ao Henrique com Ecrãs 2, 3 e 4, 2023, onde flores secas e espinhos são ofuscados por uma trama de alumínio. A fragilidade da matéria orgânica faz contraste com a rigidez do metal, que juntos se tornam resistentes ao tempo.

Ao descer as escadas deparamo-nos com Sonhos Molhados (Petits Riens), 2023 de Ana Vidigal, que nos leva para o mundo dos sonhos, “A vida é sonho” repetia o poeta brasileiro Waly Salomão (1943-2003) na sua vídeo-performance Câmara de Ecos, molhar o sonho é regar a infância que existe dentro de si. A utilização de lâmpadas de alta pressão, bambu e ferragens são matérias usadas para sustentar a engrenagem de Turn on Burn out, 2023, trabalho de Mané Pacheco, que contrasta e complementa, os sonhos molhados de Ana Vidigal.

Mané Pacheco, por sua vez, coloca Fera ll, 2022, os chifres de veado regeneram-se para que toda força interior, na sua potência, atravesse uma noite escura, e inclusive as Penumbras l e ll que Joana Coelho se inspirou pela fera de pelo sintético.

No vídeo Archiz Habitat, 2021 de Gabriel Junqueira, que se expande sonoramente pelo subsolo, florestas e ruínas artificiais, apontam para um possível futuro diante dos olhos que vagueiam no presente e, ao retornar ao diálogo com Junqueira, Henrique Ferreira Tavares atravessa um tronco de oliveira em sua composição: Domesticidade: O Interior noutro lugar, 2023 a oliveira é uma árvore resistente. Da extração do seu óleo são preparadas unções e suas raízes permite que a oliveira rebrote seja qual for a situação.

Em Caring is Sharing metade da exposição é calculada, enquanto a outra parte uma surpresa motivada pelo desafio. A essência da vida é compreendida através de contrastes-complementares que ocorrem em diferentes esferas e camadas, tornando o movimento vital uma linha continua que se metamorfoseia. Yin-Yang, Ping-Pong, Zig-Zag, Vida-Morte, Sol-Lua, são exemplos dessa complementaridade de opostos, sejam por filosofias, sonoridades ou jogos. Aqui o artista jogador faz o lance, que é colocar um trabalho, e o relance é fazer outro trabalho a partir do lance do outro. Caring is Sharing 2.0 é uma reviravolta e um respiro num sistema artístico que apresenta uma estrutura complexa e hierarquizada. O projeto de Francisco Trêpa destaca as identidades e singularidades dos artistas presentes na exposição. Filipóvic (2013) aponta para características de eventos curatoriais criado por artistas, onde corpo, experiência, festividade e encontro, exerce propostas experimentais que procuram por mudanças efetivas no contexto artístico-social.

Tudo isso parece um caminho infinito, apenas “Não esqueças de olhar à tua volta!”[i].

 

 

Referências bibliográficas:

SONTAG, Susan. Notas sobre Camp. 1964: Picador, 2019. 9 p.

FILIPOVIC, Elena. The artist as curator. França: Mousse Magazine, 2013. 281 p. Disponível em: https://studioell.org/wp-content/uploads/2020/09/filipovic_the-artist-as-curator.pdf.

[i] Citação retirada da folha de sala da exposição Caring is Sharing 2.0

Ian Gavião é artista plástico, curador independente e educador de arte. Licenciado em Artes Plásticas com habilitação em Escultura e Fotografia pela Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais. Pós-graduado em Curadoria de Arte pela Universidade Nova de Lisboa (FCSH). Apresentou duas exposições individuais, na Casa Fiat de Cultura (2022) e no Sesi Minas (2021), na cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Onde também idealizou o projeto de curadoria independente Xenon. Participou em mostras coletivas e residências artísticas nas cidades de Belo Horizonte, São Paulo e Lisboa, onde vive e trabalha atualmente.

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