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Nem o Éden se desperdiça: Gabriela Albergaria e a arte de reciclar o pensamento

“A luta para pensar diferentemente, para refazer a nossa cultura reducionista, é um projeto básico de sobrevivência no nosso presente contexto.” [1] Desde a década de 1970, Val Plumwood, expoente do ecofeminismo e da ecosofia radical, já nos advertia para a importância da filosofia e da imaginação nos desafios ecológicos. O apelo à concretude política do pensamento mostra-nos que o amor ocidental pela ontologia serviu, e ainda serve, a um projeto de divisão e domínio: o mesmo juízo que essencializa e universaliza o Ser, com “s” maiúsculo, é o que toma a Natureza como uma entidade suspensa, impessoal, “mãe generosa sem rosto, […] matéria inesgotável das coisas”. [2] Desfazer os fios que compõem estas tramas, tão fincadas no imaginário e nas estruturas, é parte fundamental de qualquer ativismo. Requer desaprender e reparar. Começar outra vez. Pensar outra vez.

Por mais de duas décadas este tem sido o ânimo do trabalho de Gabriela Albergaria, que apresenta na Galeria Vera Cortês, até 24 de junho, a exposição Desperdícios. Com uma preocupação sempre vinculada à experiência multiespecífica de um lugar, e com especial atenção aos jardins – espaços e imagens recorrentes nas suas criações –, a artista procura “uma espécie de substituto da ‘natureza pura'” [3]. Ao abandonar qualquer traço de transcendência no meio natural, recusa, também, qualquer generalização do Homem: os jardins surgem como materializações de momentos históricos, socioeconómicos, estéticos ou religiosos; locais que produzem e reproduzem cultura; focos de conflitos e de convivências. Os jardins de Gabriela, portanto, em nada remontam ao Éden. Embora sejam belos e, em certa medida, harmoniosos, não retratam uma suposta união original e inocente entre dois termos incontaminados.

Pelo contrário, vibram e roçam as contradições materiais que geram, por sua vez, novas formas de vida naturoartificiais, minerartísiticas, vegetaculturais. Deusa no seu próprio paraíso exaurido – porque nem o Éden se desperdiça –, mas remendado, recosturado. Trata-se de cortar delicadamente os caules (Coupant les tiges avec délicatesse, 2023), as crenças, os conceitos, para fazê-los crescer mais flexíveis e, por isso mesmo, mais resistentes. Duas práticas importadas de outras geografias e culturas também cumprem este papel na mostra de Gabriela Albergaria: o Sashiko japonês – método de recuperação e reforço de tecidos através de “pequenos golpes” com linha, em certas áreas de desgaste – e o fique colombiano – fibra derivada de plantas do género Furcraea, matéria-prima para diversos objetos artesanais e fonte de renda para cerca de 70.000 famílias no país [4]. Ambas as tradições de costura, manifestas na forma de delicadas composições geométricas ou novelos – quase-mapas, quase-oráculos –, desdobram, fazem e refazem uma relação que, fisicamente perto ou longe, jamais abdica da tentativa de aproximar-se mais, e mais, e mais. Sem ponto de partida, sem ponto de chegada.

Num gesto tecedor de procura, como aquele da composição e invenção poética – aproximação possível pela própria origem da palavra “texto”, do latim “textus”, particípio passado do verbo “texere”, “tecer” –, aceita-se o risco de tatear o desconhecido, o invisível, num corpo que vive e trabalha sem itinerário, na contínua exposição aos movimentos, no contraste entre a materialidade do fio e a porosidade da trama. Nos grandes desenhos da artista, cujos traços e cores são a gramática de uma linguagem já tão característica, é como se a memória do olhar fotográfico e fugaz desse lugar a uma memória outra, fixada em terrenos e profundidades distintas: a memória das mãos, dos dedos; da agulha, do lápis; da linha, do grafite. Sentem-se os contornos, a aspereza e a suavidade. Tensionam-se as rugas do passado e as minúcias do presente. Sensaciona-se o futuro. E engana-se quem não percebe que isto é, de facto, pensar outra vez. Começar outra vez.

Desperdícios, de Gabriela Albergaria, está patente na Galeria Vera Cortês, em Lisboa, até ao dia 24 de junho.

 

 

[1] Plumwood, Val. (2009). “Nature in the Active Voice”. In: Australian Humanities Review, n. 46, s/p. Tradução livre.

[2] Levinas, Emmanuel. (1961/1980). Totalidade e Infinito. (José Pinto Ribeiro, Trans.). Edições 70, pp. 33-34.

[3] Gabriela Albergaria em entrevista concedida ao jornal Público/Ípsilon. Artigo de José Marmeleira, disponível em <https://www.publico.pt/2010/05/14/culturaipsilon/noticia/os-paraisos-artificiais-de-gabriela-albergaria-256707>.

[4] Rendón-Castrillón, Leidy; et. al. (2023). “The Industrial Potential of Fique Cultivated in Colombia”. In: Sustainability, 15, n. 1: 695, s/p.

Laila Algaves Nuñez (Rio de Janeiro, 1997) é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para a imaginação e o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH), colabora profissionalmente com iniciativas e instituições nacionais e internacionais, como a BoCA - Biennial of Contemporary Arts, o Futurama - Ecossistema Cultural e Artístico do Baixo Alentejo e, enquanto assistente de produção e criação de Rita Natálio, a Terra Batida.

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