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Terra – ou os quarenta e nove degraus: Miguel Branco na Fundação Carmona e Costa

Está patente na Fundação Carmona e Costa a mais recente exposição individual de Miguel Branco Terra- ou os quarenta e nove degraus, uma retrospetiva do trabalho do artista ao longo de três décadas, que reúne mais de cem obras. A exposição contou com a curadoria de Bernardo Pinto de Almeida e é dedicada à vida de João Esteves de Oliveira, galerista e colecionador, que influenciou substancialmente o percurso do artista.

O primeiro núcleo da exposição é dedicado à série Terra, iniciada por Miguel Branco em 2013. Nesta primeira sala com paredes de cor violeta, as obras foram dispostas em constelação, sem grandes espaços vazios. O que vemos são desenhos de bibliotecas, habitadas por macacos e símios, feitos a carvão e grafite e de dimensões variadas. São bibliotecas nobres, com mobílias ricas, com estantes recheadas de livros que chegam ao teto. São salões abundantes e imponentes que conseguiam fazer parte de qualquer palácio. Podíamos pensar na palavra Revolução quando víssemos cenas deste género, mas não é isso que Miguel Branco retrata. Não se trata de uma invasão rebelde de macacos a tomarem conta de um espaço humano, trata-se de uma integração serena. Os animais não evidenciam estar a invadir um espaço que não é deles, pelo contrário, aparentam estar perfeitamente integrados no ambiente. Em grupos, ora olham para nós, ora observam o espaço ao seu redor, mas nunca com estranheza. As composições repetem-se de obra para obra, com desenhos que apresentam a mesma cena, mas com diferentes escalas.

Caminhando pelas obras, começam a surgir alimentos nas composições, acabando por se tornarem elementos dominantes. Neste grupo de desenhos onde surgem elementos vegetais, Miguel Branco teve como inspiração a pintura flamenca do século XVI, com Joachim Beuckelaer e Pieter Aersten, precursores do género “natureza morta”. As cenas desenhadas são de grande abundância de alimentos, os animais aparecem rodeados de cestos de vegetais e frutas, por vezes com escalas desproporcionais.

Elementos geométricos vão surgindo à medida que o trajeto pelas obras continua. Retângulos e círculos negros começam a aparecer, cobrindo várias secções de cada desenho. A repetição das cenas também sucede. Umas vezes, os retângulos negros cobrem partes do desenho e outras desaparecem, deixando ver o que anteriormente escondiam. No centro desta primeira sala, é exposta à altura dos nossos olhos, uma pequena escultura de dois esqueletos humanos feitos em bronze, denominada de Singing Sculpture [da série Naked Lunch] (2019) e que faz referência à performance com o mesmo nome da dupla de artistas Gilbert & George[1]. O artista vai recorrer a esta série de esculturas para pontuar vários momentos da exposição.

Antes de sairmos para a sala seguinte, o olhar vai ao encontro de uma pequeníssima pintura em óleo sobre madeira, iluminada por uma luz focal. Nesta obra datada de 1997, a mais antiga de toda a exposição, o que vemos é uma sala vazia. As bibliotecas com animais, as esculturas de esqueletos a cantar, juntamente com esta última sala vazia, acionam um sentimento sombrio e sinistro que se reverbera até ao fim da exposição.

Na sala seguinte, o ar flutua entre as obras, que agora abandonam a disposição anterior. Aqui, os animais continuam a ser as personagens principais, mas agora num ambiente natural, onde o desenho fica mais leve e os negros menos carregados, numa antítese ao que aconteceu na sala anterior. Este espaço é pontuado pela icónica escultura O Pensador, numa interpretação de Miguel Branco para a série Naked Lunch. Na parede de fundo nascem pequenas pinturas da série Submarinos Nucleares (2017), dispostas horizontalmente por todo o corredor que leva até à última sala da exposição. Nesta série, vamos assistindo a várias perspetivas do que parece ser o mesmo submarino, levemente à superfície da água, numa paisagem em tons lilás, subtilmente nostálgicos, mas atuais. Do nosso ponto de vista, caminhamos pelas pequenas paisagens como se fossemos um drone que sobrevoa à volta deste submarino, assumindo como espetadores o papel de vigilante.

A terceira sala é conquistada pela série Atlas (2022-2023), formada por quarenta desenhos de borboletas. Num azul trágico e vivo, os desenhos são dispostos linearmente formando um mural que ocupa quase na totalidade a dimensão da parede. As borboletas são todas diferentes e algumas apresentam pequenas figuras humanas que se confundem com os padrões do seu corpo. Do seu processo de construção, fazem parte imagens compostas e impressas digitalmente, com referências que vão desde imagens da guerra na Europa a imagens religiosas[2]. Ao incorporar estas imagens, Miguel Branco estabelece uma ponte entre questões históricas, espirituais e contemporâneas, associando-as às borboletas como símbolos de transformação, transcendência e efemeridade.

A exposição encerra com uma sala que acentua o mundo vanitas de Miguel Branco. Com todas as paredes pintadas de rosa rococó, as pequenas pinturas mostram crânios humanos, icebergs, câmaras de vigilância, drones ou crateras. O ambiente é de catástrofe, uma verdadeira vanitas do mundo contemporâneo, um reflexo de uma estranheza inquietante como espelho da atualidade.

Ao longo da exposição notamos como Miguel Branco parece rejeitar a figura humana nos seus desenhos ou pinturas, retratando sobretudo animais ou objetos, mas quando se trata do seu trabalho em escultura, o artista faz exatamente o oposto, representando o esqueleto do corpo humano. Naquilo que é mais físico, tridimensional e tangível, o artista confronta-nos com a mortalidade e fragilidade da vida humana. Esta dicotomia pode sugerir uma reflexão sobre a relação entre a natureza, a identidade humana e a efemeridade da existência, convidando-nos a contemplar a nossa própria condição e conexão com o mundo.

A exposição está patente até 17 de junho na Fundação Carmona e Costa.

 

 

[1] Singing Sculptures de Gilbert & George foi apresentada pela primeira vez numa galeria em 1970. Com os rostos pintados de tinta bronze, a dupla dançou em cima de uma mesa ao som da música “Underneath the Arches”, popular no Reino Unido antes da Segunda Guerra Mundial. Registo da performance disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CsuHpi2gcGY

[2] Informação retirada da folha de sala da exposição Terra—ou os quarenta e nove degraus.

Laurinda Marques (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

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