Hearts on Fire na AHomemMau
Parece-me que o dia 26 de maio passado foi especialmente intenso para aqueles que frequentemente se movem no meio da arte contemporânea na capital portuguesa. O dia da abertura oficial da ARCOLisboa para os públicos encerra uma semana lotada de inaugurações, e desponta a temporada primavera-verão dos novos ciclos expositivos.
Este foi o contexto onde a exposição coletiva Hearts on Fire se inaugurou. Patente até 30 de junho na AHomemMau, a exposição é assinada pela PLATO, um projeto criado pelo curador Diogo Ramalho. Hearts on Fire traz a Lisboa 21 artistas portugueses convidados a versarem sobre o fulgor do desejo.
A PLATO é uma plataforma multidisciplinar criada com o intuito de descentralizar a criação artística contemporânea de Portugal. Com o seu epicentro em Évora, atua a nível local e global, integrando artistas, designers e curadores emergentes, (mas também os já consagrados) a favor da efervescência dos diálogos.
Afonso Alves, André Velez Cruz, Brígida Machado, Bruno De Marco, Caio Marcolini, Claus Cordeiro, Diogo Henrique, Fábio Araújo, Fernando Travassos, Gonçalo C. Silva, Heron P. Nogueira, Hugo Castilho, Matilde Cunha, Miguel Miguel, Neuza Matias, Patrícia Rúbio, Pedro Feio, Pedro O Novo, Rui Mota, Tiago Leonardo, e Vera Matias são os artistas que compõem a exposição. Por mais que todos os nomes listados em sequência possam levantar a impressão de que a exposição estaria congestionada de significantes… ao contrário. Todas as contribuições dos artistas presentes não só agregam às suas similaridades intrínsecas, como se complementam nas suas diferenças formais.
E… que diferenças!
Facto que já revela o próprio interesse desta curadoria. Uma vez que, o convite para participarem na exposição vinha acompanhado de um único pedido: que aquilo que pensassem em expor, versasse sobre o título-tema da exposição: ‘Hearts on Fire’.
Segundo um dos artistas com quem conversei, o contacto para integrarem a exposição foi feito de maneira direta e intencional. Uma vez que, o curador Diogo Ramalho, buscava sobretudo a jovialidade na interpretação da metáfora que circunda os corações em chamas. Propondo assim, a liberdade de colaboração sem a interferência de uma narrativa estruturada que se sobrepõe aos imaginários dos próprios artistas.
Este mote formulou uma exposição com núcleos específicos que se ‘presentavam’ enquanto espaços mentais em trânsito permanente. O início deste percurso é anunciado ainda na montra, que revela a obra 3 HYB186 – série híbridos (2023) de Caio Marcolini. Numa subtileza imponente que remete formalmente às obras de Ruth Asawa e convida pela curiosidade visual o espetador a entrar na exposição.
Hearts on Fire é aberta por duas pinturas a óleo S/Título (2023) de Fernando Travassos. Seguida pelas obras de As a statement (2023) e Attachment I (2023) de Tiago Leonardo, pareadas num contraste dimensional sugestivo. Como a sabedoria popular por vezes é certa, a fotografia em anexo segurada somente pelo vidro na parede atesta que nos menores frascos encontram-se, de facto, os melhores perfumes.
Por falar em frascos, e em saudade, as esculturas em gesso Time in a bottle (2023) de Patrícia Rúbio remontam um espaço mental importante, que poderia instigar qualquer penteadeira de qualquer avó a emergir sobre o véu das memórias de infância.
Logo ao lado, Diogo Henrique com 5 ophelia (inflatable) (2021) e André Velez Cruz com duas fotografias With the lover, the car and the ring… (2023) e Unsure that this is what you want (2023). No final deste mesmo núcleo encontra-se Bruno de Marco que trabalha na intersecção da performance e a documentação com a sua projeção de fotografias song for Iara, (2020-23) e a sua gravura a song for the fire (2023).
Assumir a parcialidade de um espaço expositivo é o seguimento de uma tendência que crítica a esterilidade dos white cube, altamente sacralizado no início do século passado. No entanto, o fomento dos espaços que procuram criar diálogos com o mundo circundante, e por vezes promover trabalhos site-specific, deixou de ser uma prática crítica para ser o primeiro dos requisitos dos espaços (ditos) disruptivos.
AHomemMau, é o espaço expositivo onde se realiza Hearts on Fire. A gozar da localização privilegiada no centro de Lisboa, o espaço oferece-se às obras de arte sem abrir mão do seu caráter original. Apesar de reconhecer o intuito em aceitar o espaço enquanto uma criação da representação do próprio espetador, pergunto-me qual a mais-valia em deixar exposta uma fração do armazém de mobília acima de um dos núcleos mais esteticamente interessantes da exposição? Uma decisão que aparenta não ter sido tomada pela curadoria, mas que, à perceção visual, impregnou a exposição com lembranças desnecessárias sobre as outras narrativas do espaço.
Apesar deste apontamento mental, a curadoria supera-se em expor no núcleo central da exposição as fotografias oníricas S/ Título I, II (2022) de Matilde Cunha, como um segredo disposto num lugar onde temos que (intimamente) adentrar. Logo a seguir, o espetador encontra o Pómetro (2023) magnânimo do Rui Mota que nos apresenta numa instalação formalmente mínima a única coisa que nos resta da nossa existência em algum espaço – o pó. Que neste caso exibe-se numa ironia deliciosa com o pó de duas galerias. Na parede oposta encontra-seTri-pé (2023), também do mesmo artista.
No centro do próximo núcleo da exposição, encontra-se a instalação Sleep now, O sleep now (2023) do ato performativo realizado a 13 de outubro de 2017 em Santa Maria da Feira de Fábio Araújo. A instalação surge do chão concertado num rompante que nos leva ao canal dos sonhos mais profundos. Logo em seguida a pintura Zerkalo (2018-19) que alude ao filme homónimo de Tarkovsky. Gonçalo C. Silva com Untitled I, II (series What is left) (2022) e Miguel Miguel com O que não brilha, corta (2022) também marcam presença no mesmo núcleo. Vera Matias com óleo sobre tela O castigo da abundância (2023) submerge com gosto o espetador com as suas fortes pinceladas.
Diogo Henrique inaugura o núcleo mais assente na figuração da exposição. Exibe inner spirit self portrait (tanned legs) (2021), com destaque para inner spirit self portrait (bunny) (2021), que faz qualquer coelhão amedrontador do universo cinematográfico, até mesmo o de Donnie Darko, suplicar para que os ímpetos do Leatherface não sejam tão reais e comuns quanto na verdade são.
Um afago suntuoso, trazido por Pedro O Novo, invade os olhos dos espetadores, com o óleo sobre tela de grandes dimensões Ilha dos Amores (2023). Ao lado, encontra-se uma parede dedicada às produções mais formalmente similares da exposição, que, entretanto, formam uma constelação de diferentes significantes. Cada uma das obras exige um tempo próprio e denotam atenção aos detalhes. Exibem-se S/ Título (2023), Pointer(2023) e O Medalhão (2023) de Afonso Alves; sem título (vórtex) (2021) e Machado (2022) de Heron P. Nogueira; I (2023) e II (2023) de Brígida Machado; JUCA (2023) de Pedro Não Bonito e Não há dois, sem três (2022) de Neuza Matias. Destaque para a obra Fonte (2021) de Claus Cordeiro. Do mesmo artista também se exibem S/ Título (2022) e S/ Título (2023) igualmente estimulantes a transportarmos mentalmente.
Por fim, Punchinello e a Lua de Mel (2023) e Era uma vez um coração (2023) de Neuza Matias, que encerram com graça a exposição, circundando uma das maiores condicionantes da paixão, a ingenuidade fervorosa. Hearts on Fire atesta que o circuito não tradicional não perde em nada para o panorama mainstream, e o mais importante, não necessariamente se precisa de estar dentro da cordoaria para expor qualidade.
À ingenuidade fervorosa da juventude!