Há sempre algo que nasce ou se reinventa quando um Deslize acontece
Há sempre algo que nasce ou se reinventa quando um deslize acontece. E por meio de diferentes visões e imaginários, Deslize junta na galeria Salto os artistas Adrien Missika, Aun Helden, Darlene Valentim, Gabriel Junqueira, Gabriel Siams, Henrique Biatto, Isadora Almeida, Janne Schimmel, Joana Coelho, Jonata Vieira, Mané Pacheco, Pablo Quiroga e Pedro Barassi, numa exposição que nasce no limiar entre o real e o fantástico, o natural e o artificial, o efémero e o eterno.
Na contemplação das obras, testemunhamos formações de corpos híbridos, que flutuam entre o natural e o artificial, o humano e o não-humano. Nas pinturas de Pedro Barassi a composição combina um crustáceo e um corpo feminino que se misturam num só. O corpo híbrido que habita a pintura pertence a um imaginário simbólico, explorando a identidade e a interconexão de diferentes formas de vida.
Na mesma lógica de transfiguração, Aun Helden propõe uma instalação audiovisual composta por quatro tablets, o mistério e o desejo pela construção de um corpo capaz de interagir com formas não-humanas ou até mesmo alienígenas. Os vídeos e a sua sonoridade envolvem-nos num ambiente futurista, fluído e fantástico, provocando uma imersão sensorial única.
Mané Pacheco, mostra PET [low maintance] (2021), uma escultura que dá vida a uma criatura peculiar, que transcende a definição de animal e realidade. O corpo principal da escultura é composto por uma combinação de materiais que lembram escamas de cobra ou peixe, e equilibra-se sobre três tubos de cobre.
A criação de seres híbridos intensifica-se com as duas obras de Pablo Quiroga, Pata de amgulado doméstico (2023) e Asa (2021), onde elementos artificiais, como uma muleta e um guarda-chuva, juntam-se com elementos naturais, como penas de pomba. A combinação entre objetos artificiais e naturais criam contrastes interessantes e poéticos, estimulando a reflexão sobre os significados simbólicos que emergem dessas dualidades.
No espectro entre o natural e o artificial encontramos também Ecrã 1 (2023) de Gabriel Junqueira. A obra utiliza elementos visuais e materiais relacionados ao tema do ecrã, levantando questões sobre a mediação da realidade ou a relação entre o virtual e o físico. O artista incorpora elementos naturais como um tronco e flores, que se fundem com a estrutura principal de alumínio, aço e vidro. Esta dualidade entre o que permanece e o que é efémero, é também explorada por Henrique Biatto na instalação Um dente, um chifre (2023), onde o antagonismo de materiais faz-se entre o carvão e a cerâmica. O carvão forma um círculo no chão e serve de base para duas peças de cerâmica. Há um aspeto ritualístico associado ao círculo e ao carvão, mas as duas peças (que representam um dente e um chifre) conectam a obra ao mundo animal, evocando a força, proteção, agressividade ou identidade.
Continuando a narrativa sobre o tempo, Gabriel Siams exibe Ghostwork (2023), um relógio de bolso cristalizado com sal. Embora o relógio não seja visível, a sua forma é reconhecida por fazer parte de um imaginário coletivo. O sal cobre todo o objeto, criando a ilusão de que o relógio emergiu do fundo do mar, passando por um processo de cristalização. Misteriosa e poética, a obra evoca a ideia de tempo e transformação. A cristalização do sal sobre o relógio de bolso, sugere também uma fusão entre elementos naturais e objetos do quotidiano, convidando-nos a contemplar a interação entre o tempo humano e o tempo cósmico.
As perspetivas políticas e questões sociais são abordadas por Jonata Vieira, Adrien Missika e Isadora Almeida. Jonata Vieira intervém sobre notas de Real brasileiro, carimbando-as com estampas de chamas de fogo. A peça tem como título Futuro convertido em carbono (2021), sugerindo uma crítica ao capitalismo como agente que compromete o futuro do planeta Terra.
Adrien Missika expõe Instruction of Care (2022), um mural composto por vários cartazes que exibem frases em alemão “Dünge Alles Unkraut” (Fertilizar todas as ervas), “Giesse Alles Beikraut” (Regar todas as ervas) e “Reinige Pflanzen”( Limpar as plantas). As instruções apresentadas por meio de cartazes repetitivos, evocam a sensação de urgência em relação ao cuidado com o ambiente natural e exploram a relação entre os seres humanos e a natureza.
Na obra Vídeo: Integrantes do MST bloqueiam rodovias durante protesto em Goiás [Série Goyazes] (2021) de Isadora Almeida, a artista traz para o campo da pintura uma cena capturada a partir de um vídeo sobre um protesto feito pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) que em 2016 bloquearam estradas em Goiás, no Brasil.
A contemplação e as subtilezas poéticas do dia-a-dia, evidenciam-se nas peças de Janne Schimmel, Darlene Valentim e Joana Coelho. Janne Schimmel mostra Case Mod, 2 (2022), composta por um Gameboy e três cartuchos diferentes possíveis de jogar. O cenário deste jogo é sempre o mesmo: uma paisagem e uma personagem que nela caminha. A única diferença entre cada cartucho, é a altura do dia, um dos jogos passa-se de manhã, outro de tarde, e um à noite. O jogo também não possui muitas interações, só podemos caminhar para a frente ou para trás. Com esta limitação, Schimmel subverte a natureza dos jogos tradicionais, normalmente caracterizados por uma ampla gama de interações ou de elementos em constante mudança. A repetição do cenário oferece uma experiência contemplativa e meditativa, permitindo que o espetador se envolva na atmosfera e nas subtilezas das diferentes fases do dia.
Num ecrã vertical, Darlene Valentim apresenta Diário das nuvens (2023), uma série de vídeos inicialmente produzidos para os stories do Instagram, que agora saem do contexto das redes sociais para serem exibidos no espaço da galeria. Desafiando a noção de onde a arte contemporânea pode ser apresentada, Darlene Valentim questiona as fronteiras entre o digital e o físico, o efémero e o permanente. Os vídeos exploram a observação das nuvens, com a intenção de descodificar o que elas nos transmitem, sempre com uma abordagem leve e peculiar. Num verdadeiro exercício contemplativo, filosófico e existencial, Valentim convida também os seus seguidores a compartilharem as suas perceções e sentimentos sobre as nuvens, tornando a sua descodificação simbólica numa experiência coletiva.
Por fim, à experiência contemplativa, soma-se a obra de Joana Coelho, Hunter (2022), composta por dois desenhos realizados com pastéis secos. Os tons de azul e salmão, combinados com os traços marcantes a verde, criam uma sensação de fluidez e movimento, contribuindo para a experiência contemplativa.
Deslize funciona como corpo e matéria, proporcionando uma experiência imersiva através da interação direta com a obra de arte e das dualidades inerentes ao caos do mundo. Mas, acima de tudo, Deslize mostra-se peculiar na sua forma de criar e apresentar arte contemporânea.
A exposição contou com a curadoria de Ana Grebler e Ian Gavião, e pode ser visitada até 17 de junho de 2023 na galeria Salto em Lisboa.