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Partida do fim: um jogo de palavras, uma armadilha de sentidos

Estamos algures entre o ano do nosso nascimento e do desaparecimento. Entramos numa sala não regular, de cantos recortados e nichos. A luz é baixa e direcionada, tal como o pé-direito. Ao fundo, entre o fumo inebriante do tabaco, Isabella Rossilini exibe um vestido de veludo azul, ouve-se Julee Cruise. Lewis Carol, sentado num dos muitos booth adossados às paredes, procura Alice do outro lado dos espelhos. O pavimento veste um tom uniforme, e ao centro sobre a alcatifa, protagonizando a cena, uma imponente mesa de bilhar. Este é o prelúdio de uma ficção sem psico-rigidez. Não é surrealista, mas é uma encenação imaginada.

O que Diogo Bolota projeta para o Gabinete Giefarte é também uma encenação. Um exercício de imitação da vida. Um jogo a que chamou Partida do Fim, onde coloca o espectador no confronto entre o determinismo, jogar sobre as regras e o livre arbítrio.

As regras são claras, dois jogadores, quinze bolas numeradas e uma bola branca. As sete primeiras são as bolas chamadas lisas, as últimas sete são listadas. O objetivo do jogador, no seu turno, é acertar as suas bolas num dos seis buracos existentes na mesa, sem cometer falhas. Uma falta significa uma penalização e por consequência permite ao adversário a vantagem, ainda que momentânea. A bola oito é preta, está no centro da jogada; embora feche a partida, no contexto da exposição tende ao infinito – um fecho de jogada que talvez para o artista seja sinónimo de um recomeço, um reiniciar e não um ponto final.

Diogo Bolota tem debruçado alguma da sua prática artística no jogo, como tema: No-Reply Delivery System(2021), Amor obstáculo (2018) Sabotagem (2015). O jogo aparece quase sempre como um gesto que é lúdico, é teatral, é performativo e igualmente interativo. E a interação não é apenas uma permuta com o público, mas com o espaço. As peças não são site-specific (porque vivem além do espaço onde se apresentam), mas a dimensão espacial nas suas múltiplas camadas está implícita (para isso talvez contribua a formação do artista em arquitetura). São peças em diálogo com o lugar, cujo espectador é convidado a participar. Exatamente o que ocorre quando entramos no Gabinete Giefarte, somos convidados a abrir a partida, e a instalação assume um papel de comunicação entre jogadores, nós (eu), o artista e o espaço. No entanto, o que começa por ser um jogo, rapidamente se torna uma manipulação semântica (linguística e lógica).

Ana Anacleto assina a curadoria da exposição, problematizando através da obra de Ludwig Wittgenstein (Investigações Filosóficas) a relação entre a prática lúdica (do jogo) e a linguagem. O conceito de lúdico ou recreativo é intrínseco à sociedade (estou certo que ao saudável funcionamento da mesma) e há uma linguagem corporal entre os adversários, que me atrevo a chamar de quase intimidade (ou uma procura por antever o próximo momento). No Xadrez, à semelhança de outros jogos de tabuleiro, torna-se ainda mais evidente essa proximidade comportamental. Uma comunicação duelar, não apenas na lógica do confronto, mas também na inocente competição ou brincadeira, a que associamos o ócio. O que nos parece é que Diogo Bolota não é nosso adversário, não somos pares, pelo menos no bilhar. O artista procura iludir-nos nesta encenação montada, como uma emboscada, e a prova desse logro é a pintura-bandeira ao centro do espaço. Uma bandeira por hastear, com um taco de bilhar servindo de estrutura, posicionada na diagonal da sala. Alinha o olhar entre o ninho de melro onde se nasce (Início, 2023) e o círculo de luz da bola branca retro iluminada no canto oposto (Fim, 2023). A bandeira é uma pintura de um triângulo que se parece à forma fresca de uma melancia, quando talhada. Já o título da peça denuncia a armadilha: faço da bandeira a minha pintura. Quase como um gracejo (jogo de palavras), complementando a inversão de papéis, trocar a bola branca pela bola preta que repousa sobre o ninho.

Partida do fim não se esgota na finitude dos objetos, ou nos significados das formas ou símbolos, nem na apoteótica vitória ou devastadora derrota, abre o campo de possibilidades e interpretações. E o que quer transmitir o artista? Que a pintura é a base e o processo da sua teia de pensamento. A bandeira é o símbolo visual representativo do loop em que nos encontramos, a terminar antes de começar, a chegar antes de partir, e tudo isto no sentido inverso. É um statement não de uma vitória-meta, mas da consciente subversão das regras para dar lugar a uma continuidade.

Partida do Fim de Diogo Bolota com texto e curadoria de Ana Anacleto pode ser visitada até dia 10 de junho no Gabinete Giefarte.

 

Arquiteto (FA-UL, 2014) e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL, 2021). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com algumas instituições, municípios e espaços independentes, de que se destaca "Espaço, Tempo, Matéria" (exposição coletiva no Convento Madre Deus da Verderena, Barreiro, 2020), "How to find the centre of a circle" com a artista Emma Hornsby (INSTITUTO, 2019) e "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" com o artista Tiago Rocha Costa (A.M.A.C., 2020). Foi recentemente co-curador, com a arquiteta Ana Paisano, da exposição "Cartografia do horizonte: do Território aos Lugares" para o Museu da Cidade, em Almada (2023). Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições, livros e exposições. É co-autor do livro "Gaio-Rosário: leitura do lugar" (CM Moita, 2020), "À soleira do infinito. Cacela velha: arquitectura, paisagem, significado" (edição de autor com o apoio da Direção Regional da Cultural do Algarve, 2023) e de "Geografias Urbanas" (em publicação). A atividade profissional orbita em torno das várias ramificações da arquitetura.

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