Afrouxar o tempo, erguer os corpos, descobrir os vazios: Em Estado de Suspensão, de Albano Afonso
“A luz trazia / em si a agitação / De paraísos, deuses e de infernos, / E os instantes em ti eram eternos / De possibilidades e suspensão.” [1]
Existe um momento qualquer – que chega quase sempre de súbito, por vezes irreconhecível no presente e, depois, ainda indefinível no futuro – em que um gesto, uma imagem, um objeto ou um acontecimento produz uma estranheza tal que põe abaixo – ou acima – a montanha de referências mentais e empíricas que dão sentido à nossa experiência no mundo. Nesse instante inquieto, de difícil equilíbrio, poderíamos dizer que o teto simbólico que nos abriga e protege cai sobre as nossas cabeças; mas, poderíamos dizer, ao contrário, que este limite se desloca e se amplia para revelar um universo que, na sua desmesura infinita, se torna, ainda assim, um bocadinho maior. Quantas vezes numa vida apercebemo-nos EmEstado de Suspensão, este ensejo poderoso e fugidio?
Albano Afonso captura e traduz todo o mistério deste instante na sua mais recente exposição, com curadoria de David Barro e em parceria com a Fundación DIDAC, na Appleton Square. Na sala perfeitamente quadrangular do centro cultural em Alvalade, Lisboa, a instalação do artista brasileiro dispõe-se numa estrutura circular que impele o espectador a passear pelos seus entornos e meios. Mãos, rosto, cristais, sino e outros pequenos objetos pendem num móbile de esculturas. Do seu âmago, luzes fazem projetar nas paredes brancas da galeria os fragmentos de corpos em diferentes cores e transparências, num jogo de manipulação de silhuetas e texturas que nos transporta a uma espécie de Teatro de Sombras. É possível enxergar pássaros, letras, ou, até, uma releitura de Rodin, mas, há, também, algo de abstrato, uma potência pictórica qualquer que se insinua através das figurações flutuantes, trémulas, fora do tempo e expandidas no espaço.
É verdade que não tenho recordações de estar num berço, distraída pelos penduricalhos giratórios por cima da minha cabeça de bebé. Lembro-me, porém, de que, quando criança, o teto do pequeno quarto que eu partilhava com a minha irmã transformava-se numa Via Láctea fluorescente quando chegava a hora de dormir. Os pontos de luz, autocolantes na forma de planetas e estrelas dispersos segundo as suas posições científicas, afastavam o medo do escuro enquanto traziam a calmaria vibrante de uma noite dormida debaixo do céu. Em Estado de Suspensão, era como se a grandeza do mundo se tornasse mais palpável. De repente, num piscar de olhos, vinha a epifania dolorosa e bonita de que não estamos nada protegidos – em volta e acima dos nossos corpos é já o vazio obscuro e incalculável.
Da peça de Albano Afonso, surge uma manifestação como essa da infância: um sonho embalado numa música suave e terna, que quase se pode ouvir dos metais e linhas que carregam as esculturas suspensas, mas que, ao final, termina por abrir fissuras no real, na anatomia das coisas e dos seres – aqui, até, bastante literalmente. No catálogo para a exposição 7SP – Seven Artists from São Paulo, que teve lugar na Fondation CAB Bruxelas em 2012, Afonso é descrito como um ilusionista cujos truques refletem o dom de fazer “o público acreditar numa realidade que é tão sólida como a luz”. [2] Na Appleton, somos testemunhas deste seu poder de brincar com os dispositivos da fotografia e do olhar para operar pausas ou afrouxamentos no tempo, fazendo-nos ver a nós mesmos com os olhos de quem nos vê – de dentro e fora, simultaneamente – e despertando-nos para a fragilidade da matéria, da carne, e dos seus intervalos e tensões.
“Mas cada / gesto em ti se quebrou, denso / Dum gesto mais profundo em si contido, / Pois trazias em ti sempre suspenso / Outro jardim possível e perdido”. [3]
Em Estado de Suspensão, de Albano Afonso, está patente na Appleton Square até 10 de junho.
[1] Andresen, Sophia de Mello Breyner. (1990). “Jardim Perdido”. In Obra poética I. 3. ed. Lisboa: Caminho, p. 47.
[2] Disponível em <https://fondationcab.com/exhibitions/7sp-seven-artists-from-sao-paulo>.
[3] Andresen, Sophia de Mello Breyner. Op. cit.