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Pedras Frágeis de Raqqa por Maria Trabulo, na Galeria Presença

These stones are fragile.

These stones cry.

These are not just stones.

Fragile Stones, 2022, projeção de vídeo, som, 35mt

 

O mais recente trabalho de Maria Trabulo é um testemunho do tempo e da história. Como é próprio da artista, a sua obra é provida de sentido e significado e a sua praxis é atual, relevante­ e valiosa. Cruza as artes, cuja dimensão é ela mesma plural e multidisciplinar, com as áreas da História, da Antropologia e da Ciência. Assim o demonstra o que, presentemente, se expõe na Galeria Presença, onde se exploram questões geopolíticas através de uma criação artística esteticamente rica.

Consistindo numa investigação apresentada ao público, pela primeira vez, em 2022, no MAAT, este trabalho reemerge e ergue-se, agora, desenvolvido e amadurecido, resultado e, simultaneamente, condutor de um novo olhar reorientado e reconfigurado. Com peças novas e inéditas, a exposição intitulada Fragile Stones inaugurou no passado dia 13 de maio e encontra-se passível de visitar até 24 de junho.

Maria Trabulo interpela-nos com uma realidade que, não nos sendo desconhecida, requer-se rememorar: a importância do legado e do património, no fundo, do que não somente retrata e representa como constitui a Herança Cultural. É, em grande parte, nesta última que se sustenta e constrói a memória coletiva de uma dada comunidade e de um país, assim se solidificando os sentidos de identidade e de pertença.

Embora se trate de uma matéria e, de certo modo, de uma inquietação, ambas universais, especialmente no contexto dos últimos anos, cuja sucessão de eventos as têm convocado e posicionado enquanto centrais no campo da discussão pública, o objeto da obra da artista é o Rakka Museum. Esta importante instituição de Raqqa, na Síria, fundada em 1981, foi ocupada pelo Estado Islâmico, entre 2013 e 2017, e utilizada para as mais várias atividades, nomeadamente como restaurante. Foi continua e extensamente explorada, saqueada e devastada, não somente ao nível do seu espólio, mas também da sua estrutura física, sobretudo através de escavações.

Nesse mesmo período, inúmeros sírios que fugiram para a Alemanha resgataram arquivos desse museu, aos quais se têm juntado outros, enviados desde então. Mais recentemente, há um esforço ativo em restaurar o museu, como se explica no vídeo que partilha o título com a exposição. Nesse último, ao longo de trinta e cinco minutos que discorrem sobre reconstrução e reunificação, assiste-se a entrevistas aos trabalhadores e arqueólogos dedicados à recuperação, à preservação e à conservação do Rakka Museum e do Aleppo Museum, com quem a artista trabalhou de perto, desde 2018. Essas vozes são, indubitavelmente, exemplares de um ímpar sentido de comunidade e resistência. Uma resistência ao esquecimento, à destruição, à perda; um “dever de memória”.

É principalmente à documentação de Raqqa e do Syrian Heritage Archive que recorre Maria Trabulo. Usa sobretudo as fotografias, datadas entre as décadas de 60 e 90, de escavações, lugares e artefactos devastados pelos conflitos, as quais ela reproduz para, então, intervir plasticamente. Com uma admirável precisão técnica, a artista atribui tridimensionalidade e textura aos artefactos, libertando-os da circunscrição do registo plano da lente fotográfica e, a partir daí, aproximando-os de nós. Os títulos reencaminham para os originais, designando o objeto, o local e a data em causa. A matéria utilizada pela artista, tal como nas esculturas que habitam a primeira sala da Galeria, é uma mistura de argila e areia, da qual uma parte simbólica é, efetivamente, síria.

Destaque-se, justamente, as esculturas, nas quais Trabulo alude ou mesmo recria elementos arquitetónicos do museu de Raqqa, nomeadamente escadarias, portadas e padrões de mosaicos do piso. Em mútuos diálogo e vínculo, as peças relacionam-se também com o espaço e, por fim, connosco. Ademais, a partir delas se observa que a artista, em concordância com a profunda significação e o denso conteúdo do seu objeto de estudo, produz obras que, embora formal, visual e plasticamente delicadas, são firmes, sóbrias e motivadoras de uma intensa experiência estética.

Com efeito, Fragile Stones desvela um paradoxo entre o peso cultural dos artefactos e os terrenos arqueológicos, a par de uma consistente perseverança à passagem do tempo e aos desafios que esta impõe, por oposição a uma inevitável vulnerabilidade ao que os atravessa e atinge.

De igual modo, a criação artística de Maria Trabulo, sendo delicada, harmoniosa e reflexo de uma série de fragilidades, é completa, sólida e maior do que ela própria, ecoando e reverberando para lá da sua condição física e material.

Constança Babo (Porto, 1992) é doutorada em Arte dos Media e Comunicação pela Universidade Lusófona. Tem como área de investigação as artes dos novos media e a curadoria. É mestre em Estudos Artísticos - Teoria e Crítica de Arte, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e licenciada em Artes Visuais – Fotografia, pela Escola Superior Artística do Porto. Tem publicado artigos científicos e textos críticos. Foi research fellow no projeto internacional Beyond Matter, no Zentrum für Kunst und Medien Karlsruhe, e esteve como investigadora na Tallinn University, no projeto MODINA.

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