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Pose @ CACC

Instituído em 2020 para receber parte da Coleção de Arte Contemporânea do Estado (CACE), dando continuidade a um ciclo expositivo que pede de empréstimo obras de várias coleções privadas, o Centro de Arte Contemporânea de Coimbra (CACC) apresenta até dia 18 de junho, Pose com curadoria de José Maçãs de Carvalho. Reunindo um conjunto de obras de trinta e dois artistas, provenientes da Coleções de Arte Contemporânea do Estado, em depósito no CACC, Coleção de Arte do Município de Coimbra e de cinco coleções privadas – Coleção Norlinda e José Lima; Coleção Isabel e Carlos; Coleção Rita e Gonçalo Lima; Coleção RC e Coleção LR – a mostra desenvolve-se a partir do signo do retrato, desde gestos marcadamente narcísicos até à pura consciência de si e do outro.[1] A exposição reflete a consciência da relevância da pose e do retrato, ampliada ao autorretrato, autorrepresentação e abordagens que envolvem a identidade pessoal ao longo da História da Arte, assim como a consciência do indivíduo da sua própria mortalidade e da sobrevivência da obra, cuja gravação da face permite transformar a angústia perante a inevitabilidade da vida efémera. O retrato em pose edifica a imagem ideal de nós mesmos que chegará ao futuro, mesmo sem nós[2].

A motivação para Pose resulta do encontro com três pinturas do período moderno, pertencentes à CACE e Coleção de Arte do Município, que resumem o projeto curatorial e a partir das quais a exposição se desenvolve: da execução convencional na pose e no realismo do Retrato do Pintor José Contente, s/data, de Frederico George (1915-1994) cujo traço define com precisão a fisionomia; às pinceladas largas e tratamentos cromáticos dos negros e castanhos e revelação psicológica da retratada em a Dama da Boina, 1911, de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), à abordagem antropológica de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) em C/Mongol, 1917. Os três retratos, em exibição em cada uma das salas do CACC, formam três possibilidades de constelação que coexistem com obras contemporâneas de artistas de um largo espectro temporal, diversidades estilísticas e suportes – fotografia, pintura, escultura e desenho – confirmando uma das evidências da História da Arte: a permanência de códigos estilísticos quando do retrato se trata.

No primeiro piso observamos o conjunto de três desenhos em tinta da china sobre papel de Gaëtan (1944-2019), nos quais o artista toma-se como modelo trabalhando a sua própria imagem. Centrando-se na autorrepresentação, através de variações sobre o mesmo tema, o seu rosto, os desenhos revelam-nos diferentes estados de espíritos através de linhas rápidas e violentas, traços espontâneos e jogos de claro/escuro. Próximo, observamos a imagem poderosa do rosto sóbrio e melancólico de Amália, sobre a qual Leonel Moura (1948) intervém e manipula, apresentando-a enquanto símbolo da identidade de Portugal. Não se trata do retrato da pessoa, mas do ícone da cultura e arte portuguesa, numa atitude pop que aproxima o artista de Andy Warhol (1928-1987) cujo retrato de Mick Jagger de 1975, com faixas abstratas negras cinzas e amarelas que conferem à impressão aparência de colagem, podemos observar no mesmo espaço. Ao lado de Amália deixamo-nos seduzir pela fotografia a preto e branco de grande formato, S/título, da série Inox (1995) de Molder (1947), num trabalho sobre duplicidade e metamorfose. A partir do seu próprio corpo em autorretrato o artista constrói uma personagem, figura ficcional que nos observa numa atitude inquisidora ao assumir uma pose simples que desafia o observador. No mesmo espaço somos confrontados com o discurso crítico presente nas obras Pigmentação de Portugal, (2012) de Francisco Vidal (1978) e Compro logo existo, 2008 de Vihls (1981). Numa explosão de cores, Vidal apresenta-nos um rosto feminino sobre o mapa de Portugal através do qual aborda conceitos de nação e identidade, mediante uma técnica que evoca o grafite e a arte urbana, estabelecendo-se uma ligação curiosa com o retrato sobre cartazes publicitários da autoria de Vihls numa critica à sociedade de consumo.

No segundo piso dedicado à exposição deixamo-nos seduzir pelas impressões em grande escala da série Regards de Pierre Gonnord (1963), centradas em rostos dramaticamente iluminados, cujas cabeças emergem de fundos negros como pinturas, evocando retratos de Rembrandt, Velázquez, Veermer ou Caravaggio. O tratamento de cor e luz, e a eleição do claro/escuro conferem uma aura perturbadora e poderosa aos retratos, nos quais observamos a crueza e delicadeza dos rostos de Maki (2003) e Sonia II (2010), cujos olhares parecem seguir-nos em imagens que aspiram o intemporal. Das impressões fotográficas que se assemelham a obras pictóricas dos Velhos Mestres, observamos a pintura S/título, 2010, de Carlos Correia (1975-2018), a partir da qual recupera e reproduz Olympia (1863) de Manet. Apresentando-nos a imagem do interior de um museu, o artista inscreve silhuetas recortadas e sombrias que ocupam, ironicamente, o lugar do espectador, como que nos questionando: somos nós que vemos as imagens ou, ao contrário, são elas que nos vêem e nos questionam? O retrato enquanto projeção de nós mesmos, o papel do espectador e questões de identidade são igualmente exploradas na obra de Douglas Gordon (1966), Self-portrait of you + me (Angus Young), 2006, cujo retrato do guitarrista dos ACDC apresentando uma superfície espelhada desafia o visitante, integrando-o na obra e devolvendo-lhe o próprio olhar. A referência à presença do corpo, à ocultação e desocultação do rosto e da identidade são-nos reveladas pela Máscara, 2017 de Pedro Barateiro (1979), ideia de metamorfose que reencontramos no ideário narrativo e imagético de Paula Rego (1935-2022), na obra de clima marinho na qual retrata uma sereia, ser fantástico, enquanto criatura humanizada. Em contraste com o ambiente naïf e colorido de Paula Rego, destacamos a presença espectral de Joaquim Bravo como um vulto, uma aparição, em Death comes in silence (homage to Joaquim Bravo), 1992, de João Paulo Feliciano (1963) num retrato que remete para o abandono e solidão.

No último piso, Daniela Krtsch (1972) apresenta-nos um momento de suspensão em Please be quiet, please, 2020, no qual imperam o repouso e o silêncio sugeridos pela linguagem corporal do rapaz retratado, bem como pelo cromatismo, profundo e luminoso, de uma pintura que reflete solidão e intimidade. Observamos o traço simples e depurado do desenho a carvão S/ título, da série Elastic Feelings, 2009, de Cecília Costa (1971), cuja linha negra sobre o fundo branco do papel acentua a transparência do rosto e o vazio que define a figura, entre presença e ausência. Expressividade expectante que reencontramos noutros trabalhos em exibição da artista: dos dois corpos que se parecem fundir e cujos rostos se ocultam, da série Solve (Solve together), 2011, à presença misteriosa da silhueta de um corpo desenhado por sucessivas cordas. A evocação da face através da mancha é-nos apresentada em Assembleia Euclides, 2006, de Francisco Tropa (1968), desenho cego em argila sobre papel, máscara que remete para a ancestralidade. Próximo deparam-nos com o vazio no rosto suspenso, frontal e ausente de olhar de Pedro Cabrita Reis (1956), em Os cegos de Praga, XV (1998), para quem a verdadeira representação de si mesmo seria morto, quando se pudesse ver. Mais do que um autorretrato, o artista revela-nos um olhar para dentro, através do qual explora a interioridade, o indecifrável e o interdito num posicionamento melancólico perante o mundo. Melancolia que reencontramos na pintura, entre abstração e figuração, de Andy Denzler (1965) ao revelar-nos a imagem distorcida e suspensa no tempo de um rosto feminino numa ação vigorosa, misteriosa e sedutora imbuída de nostalgia. A encerrar a exposição a convocação da passagem do tempo e da morte é-nos revelada em Let the dirt fall, let the heads roll, 2015, cuja caveira relembra-nos a inevitabilidade da mesma. O crânio que Paulo Brighenti (1968), num gesto nostálgico e arqueológico, molda em grés e (a)tinge com pigmentos, numa exploração da permanência e solidez da matéria com o efémero, relembra-nos que somos seres mortais e que este será o nosso último retrato.

 

Com Amadeo de Souza-Cardoso / Andy Denzler / Andy Warhol / António Júlio Duarte / Carlos Correia / Carlos Noronha Feio / Cecília Costa / Columbano Bordalo Pinheiro / Daniel V. Melim / Daniela Krtsch / Douglas Gordon / Edgar Martins / Francisco Tropa / Francisco Vidal / Frederico George / Gaëtan / João Paulo Feliciano / Jorge Molder / José António Quintanilha / José de Guimarães / José Loureiro / Júlio Pomar / Leonel Moura / Muntean & Rosenblum / Paula Rego / Paulo Brighenti / Pedro Amaral / Pedro Barateiro / Pedro Cabrita Reis / Pierre Gonnord / Tiago Baptista / VHILS /

 

 

[1] CARVALHO, José Maçãs de – POSE [Folha de sala da exposição].

[2] Idem

Mafalda Teixeira mestre em História de Arte, Património e Cultura Visual pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estagiou e trabalhou no departamento de Exposições Temporárias do Museu d'Art Contemporani de Barcelona. Durante o mestrado realiza um estágio curricular na área de produção da Galeria Municipal do Porto. Atualmente dedica-se à investigação no âmbito da História da Arte Moderna e Contemporânea, e à publicação de artigos científicos.

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