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Expunção – a arqueologia espacial, corpórea e mental de Nelson Rodrigues e Xana Sousa. Entrevista aos artistas e ao curador Jorge Reis

A exposição Expunção, de Xana Sousa e Nelson Rodrigues, com curadoria de Jorge Reis, está patente na Casa Azul, da EMERGE, até 27 de maio.

Tanto os artistas como o curador têm percursos em áreas distintas, mas encontram-se no campo comum das Artes Visuais, sendo o Desenho um dos principais elos de ligação, bem como a relação entre corpo, espaço e obra – associados às noções de tempo, memória e história -, e destacando-se a ponte entre arte e pensamento crítico, envolvendo a dimensão política e filosófica intrínseca em cada indivíduo e na vida em sociedade.

De que modo cada um trabalha e interpreta estes conceitos e relações, em particular na exposição Expunção?

Nelson Rodrigues – Enquanto arquiteto e artista, interessa-me muito a relação entre o desenho e a construção, e de que forma é que esse desenho constrói os nossos movimentos, constrói a nossa vida. Se levarmos isto quase a um patamar filosófico, cada traço tem uma repercussão social e humana. Agrada-me pensar sobre um traço num papel, qual será a extensão desse traço e desse pensamento, dessa comunicação entre a mão e a mente. Interessa-me explorar essas formas alternativas de desenho e pensar no desenho enquanto matéria e não só como superfície; desenhar com objetos, materiais, ferramentas. Fazendo uma analogia com o desenho – a ferramenta também, de certa forma, desenha e constrói a nossa realidade. Aqui, em colaboração com a Xana, foi este tema da lixa enquanto superfície de desenho, mas a lixa também pode ser uma ferramenta. Dessa forma, desenhamos e construímos objetos.

Xana Sousa – No meu caso, apesar de ter formação em Pintura, fui afunilando a minha prática artística para o desenho – tanto no desenho científico, como num lado mais abstrato e recuperando a própria materialidade e o desenho dos papéis antigos. Recupero papéis e materiais da casa de familiares, que podem contar uma nova história, ter um novo formato e não só aproveitar as linhas e desenhos que esses papéis trazem, como depois posso imprimir novo desenho sobre eles. Aproveito-os também de uma forma mais escultórica, como acontece numa obra apresentada nesta exposição – o papel plissado ganha uma estrutura, movimento e tridimensionalidade, não só com a própria imagem impressa no papel original, mas depois com o que posso colocar nele. Estes desenhos ligados a estes papéis trazem à memória referências de infância; isso também é o que me interessa no desenho – como podemos recuperar essas memórias e nos relacionamos com esses objetos.

Jorge Reis – Uma das técnicas que prefiro enquanto curador é o desenho. Tenho procurado artistas que ultrapassem o limite do desenho enquanto suporte único entre o meio riscador e a folha, que ganham uma dimensão diferente do ponto de vista da relação entre quem desenha, a ferramenta e o suporte. A quebra dessas fronteiras e a expansividade do próprio desenho enquanto técnica parece ser o que me interessa mais, a par da participação do público. Portanto, este foi um encontro feliz, em que se desenvolveu trabalho de uma forma fluida, cúmplice e sinérgica.

Voltando à questão do espaço, nos Desenhos Rebocados do Nelson nota-se particularmente o jogo entre diversas perceções sobre a relação entre tela desenhada (e rebocada) e parede, inspirando-se no texto Wall, de Georges Perec.

Esta subversão do espaço, e da sobreposição entre a parede como suporte e a obra, está ligada ao cruzamento entre elementos da Arquitetura e conceitos das Artes Visuais que explora no seu trabalho, não é, Nelson?

NR – Certo. O encontro com esse texto foi quase ver alguém escrever ou pensar uma coisa que eu já sentia há muito tempo, mas de uma forma que não conseguia verbalizar. Essa relação entre a imagem e a parede e o espaço é uma preocupação minha e aqui, com estas obras, consigo fazer quase um ato de simultaneidade em que a própria imagem é a parede, e esse jogo em que, quando reparamos numa coisa, a nossa mente esquece a outra e vice-versa, aqui consigo fazê-lo em simultâneo. Outra coisa que me agrada é pensar na imagem e no que a imagem representa para nós – interessa-me a imagem como densidade e não só como superfície, e a forma como nos rodeamos de imagens na atualidade. Este trabalho é um bocado uma provocação de pensarmos como a imagem constrói os nossos espaços ou a nossa vida, e faz uma anulação da imagem ao sê-lo. Não tenho ali uma imagem no sentido tradicional, mas não deixa de ser reconhecível enquanto tal e aí também me interessa essa ideia de anulação e de sintetizar a quantidade de imagens que guardamos para nós.

A contrastar com a crueza e materialidade dos desenhos do Nelson, os Desenhos Riscados e o Desenho Plissado da Xana apresentam uma maior delicadeza e fragilidade. Nos primeiros, parece-me haver a evocação de uma ideia da morte como expunção do ser, tornando o corpo ausente através da sua ocultação no espaço e no tempo. No último, é o próprio material delicado e dobrado que vai mostrando e escondendo o desenho.

Xana, pode explicar-nos como surgiram e o que significam estes desenhos?

XS – Bem, a morte pertence-nos a todos, não é? Apesar de ser muitas vezes um tema difícil de encararmos, é algo que recorrentemente pensamos. Uma vez que falo também sobre memórias, nestas memórias temos sempre ou uma tristeza por um momento que já passou, ou porque nelas nos recordamos de alguém que já não está. E era algo que também queria pensar para mim mesma – pensar no meu corpo que ocupa um espaço e que espaço seria esse na terra; apesar de ser um tema difícil, queria representá-lo de forma delicada, daí os Desenhos Riscados terem apenas linhas delimitativas desse espaço que o corpo ocuparia. Pretendi utilizar uma técnica que usava na infância, em que pintávamos com uma cor por baixo, aplicávamos um negro por cima e, ao raspar, fazíamos aparecer a cor. Da mesma forma, quando nos recordamos de momentos ou de alguém, vamos raspando e procurando esses espaços, mesmo quando estão escondidos debaixo de tudo. Então, existe aqui este lugar de contemplação, porque temos este hábito de irmos contemplar o espaço de alguém que lá está, e é este cubo ou paralelepípedo que também trazemos para esta exposição com o lixar de um cubo de grafite.

Ao trabalhar um papel plissado, dando-lhe uma forma e dimensão específica, vou também dando-lhe esse movimento de escavar, de raspar e desenhar, ocultando aquilo que pretendo, da mesma forma que vamos escondendo aquilo que nos dói ou não nos interessa, e deixando aparecer aquilo que entendemos. É assim um apagar e dar à luz aquilo que é o dia-a-dia, a nossa vida.

Sobre os Desenhos Lixados que fizeram em conjunto, com um carácter experimental e performativo, existe uma subversão entre o suporte das obras – uma inusitada lixa – e o riscador. Como surgiu esta abordagem e como se relaciona com o conceito de “expunção” e a História recente de Portugal? E a obra aberta Desenho Expungido?

NR – A relação com o desenho e a lixa, neste caso, o elemento riscador e o elemento riscado – eles fundem-se quase, ou, dizendo melhor, são várias coisas em simultâneo. O elemento riscador produz desenho, mas depois é lixado e constitui-se ou constrói-se a si próprio também como objeto escultórico, assim como a lixa que constrói o próprio elemento riscador e ela própria se torna depois em elemento desenhado. Então, há esta constante simultaneidade de ações. Assim como nós com este desenho aberto ou participativo tentamos fazer essa ligação com essa parte da História, com o ato de apagar; o ato de apagar, do riscar e da censura, aqui ele próprio é anulado. Previamente a esta nossa intervenção, se calhar, ele podia ser entendido como um ato que risca e anula o outro; aqui anula-se a ele próprio enquanto risca; é quase como a censura estar-se a apagar a ela mesma.

XS – Algo que também temos em comum nas nossas obras é a liberdade de que o espectador possa aproximar-se, tocar nas obras, daí propormos uma obra que seja de todos; claro que sempre com o devido respeito pelas coisas, mas podemos nelas intervir – assim deveria funcionar a sociedade também, com o respeito, mas todos estarmos presentes na obra, na grande obra.

JR – O Desenho Expungido acaba por ser uma das obras com as quais as pessoas podem relacionar-se de forma mais próxima; trata-se de um ato quase irónico e subversivo do próprio ato de expungir. O objeto que expunge é expungido pela própria lixa. É uma boa metáfora que se aplica aqui no ato de desenhar – as pessoas intervêm no suporte, primeiro de forma tímida e só depois fazendo uso da amplitude do seu corpo e da sua relação com a obra; ou seja, tem o seu lado performativo.

A conversa completa sobre Expunção pode ser ouvida no podcast Artistas & Curadores à Conversa.

 

 

 

 

Inês Joaquim (Torres Vedras, 1990) vive na sua cidade-natal e tem transitado entre esta e Lisboa. Após uma breve incursão pelo design na FBAUL, licenciou-se em História da Arte (FCSH - UNL), seguindo-se o mestrado em Gestão e Estudos da Cultura (ISCTE-IUL) com a dissertação “Organizações «inter-artes»: inovação ou reinvenção? O caso da Cooperativa de Comunicação e Cultura”. Foi nesta associação cultural torreense que iniciou o seu percurso profissional, que inclui posteriores passagens por organizações de diversas áreas artísticas, desde as artes visuais (na CCC) ao cinema (na Leopardo Filmes), passando por artes performativas como a música, o cinema de animação e o teatro (na sala de espetáculos Bang Venue e na In Impetus - Escola de Atores). Nestes espaços culturais, atuou em várias áreas, destacando-se o apoio à curadoria, a produção e gestão cultural, o apoio à comunicação e a gestão de candidaturas de projetos culturais a apoios financeiros.

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