Entrevista Andreia Garcia, Ana Neiva e Diogo Aguiar Fertile Futures . Bienal de Arquitectura de Veneza
Fertile Futures, “um fertilizante sustentável de esperança”, na Representação Oficial Portuguesa da 18ª Exposição Internacional de Arquitectura – La Biennale di Venezia 2023.
Fertile Futures, com curadoria de Andreia Garcia e dos curadores adjuntos Ana Neiva e Diogo Aguiar, é o projeto que irá representar Portugal na 18ª Exposição Internacional de Arquitetura – La Biennale di Venezia 2023 que inaugura a 20 de maio. Centrado na problemática da escassez de água doce, parte do território nacional para lançar uma discussão global. “A água porque é o mais belo escritor sobre a forma como os humanos e os corpos se organizam” refere Andreia Garcia.
Conversámos com a curadora e com os curadores adjuntos a propósito do projeto e dos acontecimentos que o acompanham em diferentes lugares.
Fertile Futures, foi lançado no âmbito do tema proposto por Lesley Lokko, curadora desta 18ª edição da Bienal de Arquitetura de Veneza, “O Laboratório do Futuro”. O que são estes “Futuros Férteis”?
Andreia Garcia – Os “Futuros Férteis” são uma plataforma de construção de conhecimento que pretende contribuir para uma maior visibilidade da discussão pública daquilo que está em causa quando tratamos de algo tão importante como a água. A água porque é o mais belo escritor sobre a forma como os humanos e os corpos se organizam. Como Álvaro Domingues disse na primeira Assembleia de Pensamento, a água tem um lugar muito importante, porque ela explica como é que a sociedade se organiza. Portanto, o Fertile Futures é acima de tudo uma atitude crítica para propor, procurar ou instigar saídas para problemas com os quais estamos a ser confrontados, que não se centram só na escassez da água, mas também na sua distribuição, etc. O nosso projeto procura entender como é que se constrói a cidadania em tempos de mudança, de alterações climáticas e de globalização.
Porquê levar esta discussão à Bienal de Arquitetura de Veneza?
Ana Neiva – Para Fertile Futures ‘O Laboratório do Futuro’, convoca um modo de fazer em aberto e colaborativo.
O tema da escassez da água, expressa a emergência dos tempos em que vivemos, afirmando-o como uma problemática com manifestações várias e específicas a nível local, no território português, mas, ao mesmo tempo, com um impacto enorme a um nível global. Nesse sentido, a ponte com África, apresentada por Lesley Lokko, como o continente central e paradigmático na discussão de temas como equidade, recursos, raça, esperança e medo, é feita, neste caso em particular, a partir das questões em torno da água, entendendo-a como uma relevante fonte de conhecimento de causa, pelas suas condições climáticas mais extremas.
Por outro lado, a ideia de “Laboratório do Futuro” impele a que, também metodologicamente, se dê corpo a um programa exploratório, assente em dinâmicas laboratoriais e colaborativas e transdisciplinares de pensamento, projeto e pedagogia.
Como é que a arquitetura poderá contribuir para estes “Futuros Férteis”?
AG – A Margarida Waco, na primeira Assembleia de Pensamento que teve lugar em Lisboa, fez uma apresentação estruturada em três questões, e a última era exatamente essa, um pouco mais extensa – Como é que poderá a prática da arquitetura informar possíveis imaginações que possam estar para além dos domínios do capitalismo? Quando a questão é colocada assim, falamos de princípios que assentam em estratégias violentas provocadas, acima de tudo, pelo extrativismo. Há portanto, mobilizações que resultam em corpos que exercem forças sobre outros corpos. Quando estamos perante problemas como estes, estamos perante uma necessidade urgente não só de repensar questões profundamente políticas, mas também de repensar a nossa sociedade para além dos seres humanos, tendo em conta ecossistemas que acima de tudo vão permitir uma tomada de consciência de que a Terra reage à forma como nós, humanos, agimos sobre ela. Sendo os arquitetos os maiores agentes sobre a Terra, o mundo material da arquitetura, já não está limitado a – pensamos nós e este projeto – programas, tipologias e arquétipos singularmente identificados. A arquitetura tem assim que somar às suas responsabilidades, a de acompanhar coletivamente a evolução do tempo, tendo obrigação de se adaptar a um mundo em constante mudança.
Qual será o impacto da arquitetura num tema tão basilar como a escassez de água doce?
Diogo Aguiar – O programa proposto por Fertile Futures, defende a dimensão laboratorial do projeto de arquitetura, e a capacidade de uma exposição de Arquitetura avançar para além da representação de edifícios, formas, materiais ou estruturas existentes, procurando imaginar o futuro, e reclamando a relevância da disciplina da Arquitetura, enquanto prática cooperante no avanço de soluções para a resolução de questões complexas que tendem a ultrapassar a nossa compreensão ou controlo.
A Arquitetura, muitas vezes entendida como algo meramente estético ou objetual, tem vindo a perder a sua relevância e pertinência, enquanto disciplina que importa auscultar nas decisões que vêm moldando a sociedade e o futuro. Esta exposição procura precisamente o contrário: vincular a Arquitetura a assuntos emergentes ou à resolução de problemáticas urgentes aos quais, numa primeira análise, ela parece ser totalmente alheia, mas para os quais, na verdade, muito pode contribuir, desde que em colaboração estreita com outras áreas disciplinares.
Foram convocadas sete equipas compostas por jovens arquitetos e profissionais de outras áreas de conhecimento para o estudo e desenvolvimento de propostas para sete hidrogeografias portuguesas. Porquê uma conjugação multidisciplinar para o desenho de propostas para o futuro destes territórios específicos?
AG – Se o projeto parte da consciência de que somos a causa dos problemas conjunturais, então a resposta a esses problemas passa pela consciência de que somos, também, a sua solução. Esta é a única forma de conseguirmos encontrar soluções mais exequíveis e sustentáveis. Apenas trabalhando as nossas capacidades de forma colaborativa, acreditamos que conseguimos modificar alguma coisa com um impacto real, para contrariar os danos por nós causados. Se estamos empenhados em contribuir para a concepção de um futuro descarbonizado, descolonizado e colaborativo, a arquitetura deve integrar um modo de fazer que é horizontal e que atua de forma não hierárquica, na base da cooperação entre disciplinas. Portanto, estes ateliers de arquitetura, estes especialistas e estes consultores, são escolhidos para apresentarem modelos propositivos para sete hidrogeografias previamente identificadas que levantaram questões que foram sendo adaptadas e ajustadas, no decorrer do laboratório, fruto de sucessivas consultas e discussões entre os vários intervenientes. Parece-me importante referir que consultores e especialistas, são oriundos de áreas disciplinares muito distintas, com posicionamentos e visões igualmente distintos e, por vezes, com visões políticas opostas. Isto faz com que os tais modelos propositivos que constituem possíveis caminhos a adotar, sejam muitas vezes críticas, por vezes opostas a algumas das visões ou ideologias de alguns dos consultores e especialistas.
Podem revelar-nos alguns dos conteúdos das propostas das várias equipas?
AG – Vou referir verbos nos quais temos estado a trabalhar que podem ajudar a vislumbrar não respostas, mas posicionamentos das várias equipas. Os Space Transcribers, que estão a trabalhar a bacia do Tâmega vão propor um sistema de mediação, que articula diferentes escalas. Portanto, exploram a capacidade mediadora da arquitetura. A Dulcineia Santos Studio, que está a trabalhar o Douro Internacional, vai explorar uma resposta que recorre a sistemas naturais. A Guida Marques está a trabalhar o Médio Tejo e a resposta que apresenta parte de um princípio, ou de um processo manifesto, que reivindica a renaturalização progressiva da paisagem. Os Pedrêz, que estão a trabalhar a Albufeira do Alqueva, exploram o tema da descontaminação do solo. O Corpo Atelier, está a trabalhar o perímetro de rega do rio Mira, e apresenta um projeto que advoga o potencial político da arquitetura. O Ilhéu Atelier, na Lagoa das Sete Cidades, aposta na reimaginação utópica do futuro. O Ponto Atelier, ao trabalhar sobre as ribeiras madeirenses, faz uma reflexão crítica sobre o trauma, associado a esta problemática.
O que vai acontecer em Veneza a partir do dia 20 de maio?
DA – O dia 20 de Maio começa logo ao pequeno-almoço, na cafetaria do Palazzo Franchetti, com a segunda Assembleia de Pensamento, em formato Breakfast Talk, contando com a presença de toda a equipa curatorial e artística. Este momento marca a abertura da exposição ao público e permitirá a partilha dos resultados do processo laboratorial desenvolvido ao longo dos últimos quatro meses, envolvendo a comunidade internacional e especializada na discussão do tema central proposto.
A exposição Fertile Futures estará patente no Palazzo Franchetti até dia 26 de novembro, enquanto o restante programa do projeto se desenvolverá em Portugal: as restantes três Assembleias de Pensamento acontecerão em Braga, em Faro e em Porto Santo e o Seminário Internacional de Verão, que terá lugar em julho, no Fundão.
Para o encerramento da exposição está previsto o lançamento do segundo volume do catálogo bilingue Fertile Futures que registará os conteúdos produzidos entre maio e novembro, nomeadamente a instalação da exposição em Veneza, os resultados do Seminário Internacional de Verão e os assuntos debatidos nas Assembleias de Pensamento, em Portugal, permitindo assim fixar e disseminar o conhecimento colaborativamente e interdisciplinarmente construído.
Fertile Futures constrói uma possibilidade de futuro? Que futuro é esse?
AN – Olhando para as ‘arquiteturas da escassez da água’ enquanto reservatórios de futuro, potencia-se um discurso expandido, útil à resolução das problemáticas emergentes.
Imagina-se um futuro em que a Arquitetura possa voltar a ter um papel mais relevante na sociedade, trabalhando, em cooperação com outras disciplinas, em problemáticas urgentes que são fundamentais para mitigar o impacto da ação antropocêntrica no planeta. Aprender com África e com outras regiões do globo que há muito lidam com a escassez de água doce, apresenta-se como uma estratégia assumidamente descolonizada para melhor estruturar o futuro, entendendo o planeta como um único lugar e os seus habitantes, humanos e não humanos, como um só.
A Representação Oficial Portuguesa baseia-se em modelos especulativos para futuros que sejam mais justos, inclusivos, equitativos e diversos. Complementarmente, ambiciona-se que estas propostas permitam criar um amanhã mais fértil, com ênfase em práticas ambientais sustentáveis, criatividade, generosidade, abundância, positividade, produtividade, responsabilidade, diversidade de perspetivas para um amanhã feminino e plural.
AG – A esperança é que seja um futuro mais descarbonizado e que possamos, com este projeto, adquirir uma maior consciência dos meios que estão ao nosso alcance para, enquanto arquitetos e não arquitetos, nos prepararmos para a transformação do território e para uma, cada vez mais galopante, escassez de recursos. Um futuro que terá necessariamente que passar por mudanças de mentalidades e práticas.
O que esperam que mude após a passagem de Fertile Futures por Veneza?
DA – A exposição, ou o confronto, de um conjunto de arquitetas e arquitetos, a partir das Oficinas da Hidrogeografia, a questões que normalmente não ocupam a sua mesa de trabalho quotidiano, e às quais os arquitetos se têm mantido alheados, ambiciona sensibilizar para a necessidade de se trabalhar colaborativamente e de forma transdisciplinar no desenvolvimento de estratégias que permitam mediar a convivência entre espécies e considerar o impacto da nossa ação no planeta. Ambicionamos estimular o desenvolvimento de modos alternativos de fazer Arquitetura, contribuindo para alterar a forma como vemos o mundo e reivindicando a relevância da disciplina na garantia de uma sociedade mais justa, coerente e ambientalmente sustentável.
Ao mesmo tempo, ao inscrever estas preocupações na prática das futuras gerações, a partir da organização de um Seminário Internacional de Verão, no Fundão, dedicado a estudantes de arquitetura provenientes de um largo espetro geográfico, esperamos favorecer o lastro e o futuro esperançoso do projeto Fertile Futures para além do tempo da Bienal.
É, também por isso, uma oportunidade sublinhar a importância de inclusão destas temáticas nos currículos académicos das universidades, pois acreditamos que a Arquitetura tem que ser muito mais do que meramente um serviço à mercê dos grandes investimentos imobiliários.
AG – Pegando nas duas palavras, futuros e férteis, esperamos que o futuro seja mais justo, mas também mais fértil e, na forma como se apresenta mais imaginativo, mas também mais responsável. E mais plural. Esperamos que após a passagem de Fertile Futures por todos os lugares por onde vai passar, se vão somando corpos a um gesto que pode ser um fertilizante sustentável de esperança.