We Have Fun, dos primeira desordem, na Livraria ZdB
We Have Fun é uma atuação punk-rock num tempo e espaço expectantes.
O palco está montado, as estruturas de suporte dos instrumentos dispostas devidamente, os ativadores neuronais psicotrópicos germinam no calor do interior, o charuto jaz adormecido sobre o cinzeiro, os snacks estão prontos para serem petiscados e a litrosa de cerveja, em riste, pede para ser aberta.
Tudo está pronto, só espera é concretização: a banda tem nome, tem conceito, tem matérias poéticas e instrumentos, mas ainda não existe – como um longo período procrastinante, adiado ad aeternum, porque primeiro está a gratificação instantânea, a adrenalina rápida de uma qualquer coisa, ou o puro e prazenteiro ócio de nada fazer. Porque, enfim, a ideia parece ter vibração apenas na mente, daquelas projeções imaginárias que se bastam a si próprias e que a serem realizadas podem perder o vigor e o ímpeto, quem sabe, iconoclasta.
Não muito longe, um pequeno livro anota possíveis nomes de bandas: “One Man Island”, “Sextones”, “Mantra Revolution”, “The Drones”, “Paradise Paradigma”, “Hairy Chests”, “Les Bidonvilles”, etc.
A aleatoriedade é só aparente e, neste contexto, We Have Fun só poderá ser entendido como um exercício metalinguístico ou metaperformativo, em que a banda, primeira desordem, é simultaneamente dupla artística e grupo musical cuja formação deverá concretizar-se num futuro próximo, e o que se vê aqui, nesta instalação heteróclita, mais não é que uma prática bem-humorada e autocongratulatória, em perpétuo devir, na qual os primeira desordem do presente homenageiam os primeira desordem do futuro.
A obra é labiríntica, ridícula, risível. Não do ponto de vista pejorativo, mas do ponto de vista de algo que desafia a linearidade dos factos, da vida, da arte e se assume profundamente contraintuitivo. Talvez melhor possamos entender a dupla primeira desordem como a emanação de um Diógenes em esteroides: não se compromete com nada, faz o que lhe apetece, masturba-se em público, zomba de tudo o que está instituído, perturba, subverte e deturpa a ordem natural e civilizacional das coisas – um verdadeiro cinismo, na verdadeira aceção grega e clássica da palavra, sem hierarquias, sem filtros ou decoro, que desconstrói normas sociais, contradições, hipocrisias.
Conhecemo-los de outras investidas vagamente criminosas, vagamente delirantes. Outros tours pelo país, em jeito de banda punk, quando o punk ainda não se deixava fotografar, em Camden, a troco de pounds para beber umas pints. Em Escavação (2017), enterraram uma coluna antiga pintada em dourado num local de escavações, para que posteriormente os arqueólogos, no seu moroso exercício de virar a terra, descobrissem um inaudito caso da antiguidade, que agora se mostrava às luzes da academia. Era falso. Numa só jogada, os primeira desordem comprometeram a construção do Passado, das cadeias de valor dos artefactos, da História e da Arte. Mais tarde, em The Kids Are Alright (2022), esse comportamento subversivo apontava armas para a linguagem urbana das pichagens, dos tags e dos graffitis, retirando-lhe a carga criminosa e pintando-a de branco em sede de galeria. E em Backing Tracks e Cenas Assim (2022) era a separação entre trabalho e lazer que surgia comprometida, num cartaz de cinema cuja informação e linguagem em nada dizia respeito a um filme ou peça cinematográfica.
O humor é-lhes indissociável. A ironia também. Ou será preferível chamarmos-lhe antes pós-ironia? Ou metaironia?
Se a ironia escarnece e recusa a sinceridade, a seriedade, os valores humanos, a pós-ironia devolve-nos à seriedade numa segunda camada de entendimento. O que parece ser uma coisa meramente absurda ou cómica, é, na verdade, algo sério ou que pode ser levado a sério. E se a vida, a microgestão dos acontecimentos quotidianos, a náusea ridícula da existência, é absurda, é importante levá-la a sério – daí muitos considerarem a pós-ironia uma nova sinceridade (curiosamente nome de banda norte-americana), cada vez mais explorada na cultura popular, dos filmes às séries televisivas, da literatura aos memes, num post, num comentário, num reel das redes sociais.
Na metaironia, seriedade e ironia confundem-se. O leitor ou espectador é lançado num inquietante e redobrado esforço interpretativo e reinterpretativo, sem que chegue a uma conclusão ou consenso entre pares.
É neste caldo risível e absurdista que assalta a contemporaneidade e respetiva produção, entre ironia, pós-ironia, sinceridade e nova sinceridade, por vezes caricatural e compulsivo, que o motor criador e criativo dos primeira desordem radica. Sem sabermos para que lado pendem, se para uma nova sinceridade, se para uma ironia desprovida de qualquer responsabilidade, a dupla escalpeliza cada camada linguística, cada texto, subtexto, intertexto e hipertexto para lançar a dúvida e burlar a mente e a razão. We Have Fun é uma cena hilariante, e, como metaexercício, é bem provável que todas estas categorizações sejam por eles próprios postas de lado e também ridicularizadas. O habitual vigor juvenil com que muitas das suas obras se reveste é, muito possivelmente, uma provocação autodepreciativa deste jeito de fazer obras de arte de forma espontânea, à revelia de tudo e de todos, pondo em cheque instituições, convenções e ordens. Nunca o saberemos exatamente.
Do ponto de vista da disciplina da Arte e da crítica, esta é uma prática que também belisca a própria noção de Arte e de objeto artístico, pois que estimula novos pareceres críticos e desenvolve outras ferramentas conceptuais, sem esquecer, contudo, a importância da matéria, tão clara e evidente nas legendas das peças. São estas, aliás, um dos vários fios condutores da decifragem do puzzle mental e plástico com que a banda/dupla nos desafia. O caráter dúbio, a amoralidade a que submetem a arte e a desconstrução social, cultural e material que promovem nas suas obras tendem a criar novos territórios fictícios, sempre expansivos, que alimentam a discussão e o debate sobre essas contemporaneidades e pós-modernidades tão difíceis de balizar. Resta a incerteza e a tensão da incerteza, que inquieta o espírito apolíneo que requer esclarecimentos e uma lógica estanque.
Por esta via, o que os primeira desordem nos mostram é uma Arte não serve nada nem ninguém, não tem missão, propósito ou pedagogia. Não tem política nem argumentação. Existe, simplesmente, como um obstáculo que nos fita, uma e outra vez, e nos desassossega.
We Have Fun está patente na Livraria da ZDB até 3 de junho, com a curadoria de Joana Leão.