Dumping – A Obra de Arte na Era da Economia Digital
Em plena Baixa do Porto, na Rua Sá da Bandeira n.º 196, nasce EDITORIA o novo espaço cultural na cidade com o intuito de desabordar o centro e abraçar a turbidez. Concebido por Ana Carvalho, Alejandra Jaña, José Roseira e Paulo Mendes, o projeto EDITORIA apresenta uma programação que se pretende diversa e complexa, centrada nas artes plásticas, design, música e cinema, regada por boas conversas, música e comida, num espaço que contará com a apresentação de livros de autor, múltiplos de arte e livros de artistas.
Cultivar a curadoria e edição de ideias, discursos e debates, obras e acasos, apresentando os resultados em formas e suportes variados é a proposta de EDITORIA. Incindindo sobre expressões artísticas, a programação não se limita a dar a conhecer obras e artistas, mas a promover o debate de ideias, função da Assembleia Ordinária, criada em 2022 e que agora é acolhida pela EDITORIA. Para além da promoção e apresentação de novos artistas e práticas culturais, este é um espaço de encontros de visões diferentes ou antagónicas, um espaço que se quer de discussão sobre as propostas e temas a apresentar, numa recolha de divergências para edificar uma biblioteca da diferença.
Neste novo lugar expositivo, inaugurou no dia 17 de março, o programa TURBULÊNCIA, projeto curatorial de Paulo Mendes, com a exposição-instalação Dumping- A Obra de Arte na Era da Economia Digital, da artista Rita GT, patente até 15 de maio. Dando continuidade a um percurso de investigação sobre a prática secular da produção cerâmica – medium por excelência do corpo de trabalho da artista – e os seus contextos sociais e culturais, a exposição inaugural de EDITORIA revela-nos uma série de peças inéditas que se relacionam com trabalhos anteriores de Rita GT – instalação Museu Duty Free (2019) – e com a sua pesquisa sobre a história de fábricas encerradas ou abandonadas associadas à tradição cerâmica vianense, caso da Fábrica da Meadela fundada em 1947.[1]
Ao pensar no projeto para inaugurar o espaço expositivo, o curador Paulo Mendes desafiou a artista sobrepossibilidade de continuar a desenvolver esta série de trabalhos, na medida em que faria sentido naquilo que era a política do projeto no seu todo, no modo como o tínhamos pensado e que tem a ver com aquilo que é o espaço da EDITORIA. Segundo o curador,
O espaço da EDITORIA tem a ver com a ideia de edições, de livros de artistas, com a ideia dos múltiplos (…). Aquilo que a Rita está a fazer é trabalhar com a ideia da produção industrial transformando-a em produção artística. Tem a ver com produção em série, com o facto de serem múltiplos de artista e na altura pareceu-me um projeto interessante propor à Rita trabalhar a partir desta fábrica e com estas cerâmicas.[2]
Dumping- A Obra de Arte na Era da Economia Digital, possibilitou a Rita GT encerrar o ciclo de trabalho com a Fábrica da Meadela e a investigação sobre a loiça artística decorativa nela produzida: as peças, os moldes, os desenhos e o tipo único de pintura. Durante o processo de concepção e produção da atual exposição, a artista visitou o espaço fabril uma última vez, tendo tido a oportunidade de realizar no seu interior um novo trabalho em vídeo, Olívia(2023), que agora se apresenta.
Com uma mensagem política, social e cultural, a exposição insere-se numa prática artística que promove o questionamento e a reflexão de temas como a memória, história e identidade, ao incluir elementos da cultura popular e referências do mundo do artesanato, operando as peças cerâmicas como símbolos da história da região de Viana do Castelo e transmissão de uma possível identidade cultural portuguesa. O sentido crítico da artista é evidente na sua aproximação à cerâmica, medium conotado como hobby feminino, considerado um género menor no mundo das belas-artes, mediante um corpo de trabalho que promove o questionamento entre hierarquias artísticas e uma reflexão sobre as diferenças entre fine arts e arts and crafts. A ideia de múltiplos e o que torna uma obra única, são igualmente questionados pela artista ao longo da exposição, sendo de destacar que as peças em exibição da sua autoria resultam de apropriações de antigos moldes, agora abandonados, da Fábrica de Meadela. Todas as peças são únicas, mas têm moldes iguais. O mesmo molde, mas com intervenções únicas, gosto de jogar com isso no meu trabalho.[3]
Artista crítica, interventiva e humanista, Rita GT aborda o estatuto da mulher no centro da produção fabril, numa chamada de atenção para o papel secundário que ocupavam nas fábricas, no métier da pintura, considerado um trabalho delicado e de menor importância, associado ao feminismo e às questões de género. Numa representação simbólica das trabalhadoras fabris, Olívia Pimenta, antiga operária da Fábrica da Meadela, é a personagem central do trabalho em vídeo com o seu nome. Mestre do Ramalhete – desenho e pintura de referência da louça de Viana – esteve presente na inauguração de EDITORIA, participando da performance que uniu a artesã e a artista, pintando manualmente os ramalhetes azuis em peças terminadas, vasos que agora integram a exposição, ao mesmo tempo que Rita desenvolvia a sua performance com sprays, numa oposição entre a gestualidade do artista com o trabalho mecanicista das funcionárias de uma fábrica. Também os cinco cartazes de Dumping Series, 2023, em exibição na parede, foram intervencionados em spray pela artista durante a inauguração. Tratam-se de peças únicas, imagens de arquivo que a artista recuperou e manipulou, trabalhando a ideia de memória e de continuidade.
Um dos aspetos que interessava ao curador explorar e que remete para o título da exposição, Dumping, é a questão do valor da obra: entre aquilo que é um objeto que a artesã pinta na fábrica e que não é um objeto de arte, e os objetos que foram apropriados na antiga fábrica pela artista, e que ao manipulá-los com a tinta azul adquirem um valor totalmente diferente do trabalho artesanal.
Concebida e desenvolvida enquanto espaço cenográfico, numa lógica de experimentação e leitura aberta, a exposição-instalação revela-nos uma história que está a ser contada e em que o visitante é um performer no espaço expositivo. Desde o momento em que a observamos da rua – através da montra da antiga loja que editoria ocupa – e entramos no espaço, somos convidados a apreciar uma encenação mediante um desenho expositivo que nos conduz por um ambiente de memórias da antiga Fábrica da Meadela e de resgate da simbologia e iconografia de um passado. O curador e a artista conceberam um espaço híbrido, entre a oficina e o atelier, que joga com a história da fábrica, mediante a recuperação de elementos e utensílios do antigo espaço fabril, que evocam o trabalho de pintura das artesãs. Observamos dispostos no chão moldes únicos que não serão mais produzidos; o frasco com os pincéis de Olívia e a tinta azul do seu saber e ofício; os cavaletes e as caixas de madeira para o transporte das cerâmicas e as estantes em madeira onde as porcelanas eram colocadas, e que em Dumping exibem as peças da artista e o trabalho em vídeo. Apresentando uma montra e situando-se o espaço da EDITORIA ao nível da rua, houve o interesse em criar uma relação entre o projeto e o público a partir do exterior. Neste sentido destaquemos a opção curatorial em assumir na própria montra uma estrutura preexistente enquanto palco e sobre a qual foram dispostos, a alturas diferentes, doze cavaletes da antiga fábrica – estruturas interessantes do ponto de vista de design industrial da época – e onde se apresentam algumas das obras da artista nessa espécie de hibridez, mais uma vez, que tem a ver com as questões de valores de mercado das várias peças.[4]
Salientar a importância da produção cerâmica e da Louça Regional de Viana, enquanto elemento identitário da região, preservar o legado da indústria de cerâmica do Alto Minho, bem como a memória material e imaterial da Fábrica da Meadela e respetivo acervo histórico são aspetos fulcrais da presente exposição, que a artista materializa num trabalho não verbal, que é também chamada de atenção e tomada de consciência sobre a existência deste legado e desta história que não pode nem deve ser negligenciada.
[1] A este propósito relembremos Unearthing (2021), performance vocal e de movimento concebida pela artista e que teve como cenário o espaço da antiga fábrica de louça de Viana do Castelo, cidade onde Rita vive e trabalha atualmente.
[2] Citação da intervenção do curador durante a visita guiada à exposição a 29 de abril de 2023.
[3] Citação da intervenção de Rita GT durante a visita guiada à exposição.
[4] Citação da intervenção de Paulo Mendes durante a visita guiada à exposição.