#Slow #Stop … #Think #Move – Fidelidade Arte
“Mergulho” na escuridão do espaço, e identifico, com alguma dificuldade, a obra Bigwide (1991), de Michael Biberstein. A primeira sala da exposição, #Slow #Stop… #Think #Move, (a poucos dias de terminar na Galeria Fidelidade Arte e próximo de inaugurar em junho, na Culturgest do Porto), encontra-se envolta numa penumbra. Apercebo-me depois de outras obras a pontuar o lugar, mas não consigo apreendê-las com clareza, dada a pouca iluminação apresentada na sala. Compreendo vultos, pequenas dobras, algumas flexuosidades, mas ainda assim com enorme esforço as perscruto. É exigido, por isso, a habituação prolongada e meticulosa do olhar.
Obrigo-me a hesitações, alguns avanços e recuos, e retorno a obras que se encontram no espaço, para melhor compreender o que configuram e a quem pertencem. Algumas escapam-me ao entendimento, e por essa razão volto atrás para as apreender.
Ana Anacleto, curadora desta exposição (#Slow #Stop… #Think #Move), ao obscurecer o espaço onde se encontram as obras expostas, pretende abrandar o ritmo de fruição e potenciar, no visitante, uma experiência estética aprofundada e centrada numa dimensão mais contemplativa e demorada da fruição da obra, convidando o espectador a parar para pensar. O que Ana Anacleto parece propor também é uma desmontagem analítica da própria ação do curador, talvez uma metacuradoria, ou um teste aos limites da própria disciplina.
Volto a Bigwide, na sala que continua escura, e relembro uma longa e importante entrevista que o artista concedeu, em 2001, a Delfim Sardo[1]. Nela o artista explicava como ficou surpreendido quando, em pequeno, visitou um museu pela primeira vez e ficou obcecado com uma obra de Nicolas de Stael. A partir desse momento, Biberstein iria intrigar-se com o poder das imagens, e a propriedade de as mesmas incessantemente nos espantarem e causarem marcas no espírito por longos e continuados períodos de tempo.
Não será talvez por acaso que a exposição inicia com uma obra de Biberstein, artista que muito se interessou, de um modo conceptual, pelos mecanismos fisiológicos e mentais, desencadeados no espectador, aquando da receção da obra de arte. Muitas vezes o artista, “além do ato de pintar”, ocupou-se fundamentalmente do próprio “ato de apresentar a obra para ser observada”[2]. Porque tudo acontecia na mente, como dizia.
Esse ato de apresentar a obra, essa atenção redobrada para com a receção da obra, surge enfatizada/reforçada por Anacleto, e constitui o ónus da exposição.
Nela identificamos, entre outras coisas, a abordagem da “perceção não somente como um simples contato do espírito com o objeto presente”[3], neste caso as obras, como diria Bergson, mas também como materialização de “lembranças puras”, através de “lembranças-imagens” sugeridas por essas mesmas obras[4]. As imagens, embora aqui obscurecidas, despertam a lembrança e (re)criam novos presentes, desses passados onde se aloja a memória. “o passado deixa o estado de lembrança pura e se confunde com uma certa parte do meu presente”[5]. Sendo assim o que é o ato de observar uma obra senão o de a recordar? A Pyramid, 1986, de Sol Lewitt, como em muitas das obras apresentadas, conduz-nos a esse passado que se reconfigura no presente, e que é, no domínio das experiências individuais, particular em cada um de nós. Dificultada, pela débil luz que a envolve, a pintura de Lewitt enfatiza os meandros da perceção e confirma o que certa vez, Merleau-Ponty, asseverou, em matéria do visível, que “o espírito sai pelos olhos para ir passear pelas coisas, uma vez que não cessa de ajustar nelas a sua vidência”[6], e talvez as suas contas.
Esta obra, de Lewit[7], também nos conduz a uma ideia de minimalismo que se revestia de um certo gosto pelas formas geométricas e pela gestalt simples. Não sem falar, também, da problematização da essencialidade da pintura, e dos seus elementos constituintes, que, de forma não tão óbvia, porém, foram beber provavelmente a Greenberg, quanto mais não seja para estabelecer um caminho diferente depois, a partir da planura da cor.
A escolha das obras, por parte de Ana Anacleto, enfatiza a contemporaneidade enquanto lugar de confluência de vários tempos. Leva-nos a obras de Ana Santos, Mattia Denisse, Sol Lewitt, Fernando Calhau, Ana Jotta, Isabel Carvalho, Luís Paulo Costa, Jonathan Monk, Armanda Duarte, Mariana Caló e Francisco Queimadela, Francisco Tropa, António Júlio Duarte, Isabel Carvalho, Vasco Barata, António Dacosta, Isabel Cordovil, Julião Sarmento, Paulo Brighenti, Tiago Baptista. Num esforço de adaptação ocular do lugar impõe-se o chilrear de um líquido transbordante, branco (leite), proveniente de um clarão emitido por um vídeo (Spilt Milk, 2019) apresentado, algures, num corredor fundo, pelos artistas Mariana Caló e Francisco Queimadela. Trata-se de um vídeo que mais enfatiza esse tempo que é despendido, e necessário, para a fruição de uma obra, e de um tempo, o nosso, ao qual foi destituída a capacidade de problematizar, e viver, compassadamente o tempo presente. A não perder.
[1] Sardo, D (2019) “Uma espécie de modo paisagístico: uma conversa com Michael Biberstein, ao longo de duas tardes em 2001”. Fundação Caixa Geral de Depósitos – Culturgest. Lisboa. http://hdl.handle.net/10451/42688
[2] Ibidem
[3] Bergson, H. (1999). “Matéria e Memória – Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito”. Martins Fontes
[4] Ibidem
[5] Ibidem
[6] Merleau-Ponty (2018). “O olho e o espírito”. Nova Veja. Pág. 27.
[7] O próprio gostava de ser referido enquanto artista conceptual.