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O corpo que habita em mim

A contemporaneidade, segundo Giorgio Agamben é um “anacronismo que nos permite compreender o nosso tempo sob a forma de um “demasiado cedo” que também é um “demasiado tarde”, de um “já” que também é “ainda não”[1]. Esta afirmação, é elencada por Rémi Coignet no texto de abertura da ediçãoChanging Times: Art Facing a new world no volume de 2020 do Parallel Atlas publicada pela The Eyes, onde se integra a curta-metragem a quem este ensaio se destina: ‘Growing’ de Agata Wieczorek (Polónia, 1992). A obra, sob a ótica do body-horror, subgénero do terror, anuncia uma das maiores preocupações do nosso tempo amorfo: a virtualização e alienação dos nossos corpos.

As edições do Parallel Atlas representam um dos últimos estágios do processo de trabalho da plataforma Parallel liderada pela Procur.arte em Lisboa. Dedicada desde 2017 a unir organizações criativas europeias, visando promover intercâmbios e mentorias interculturais, a partir da angariação de novos artistas e curadores por via de open calls. Para que, uma vez conectados, estes atores possam em conjunto buscar novas conversas para integrar o panorama da fotografia contemporânea.

Ao lado das publicações, são também feitas exposições nas associações culturais membros do projeto. A exposição Growing, patente na Procur.arte até o dia 6 de maio, exibe o universo expandido da curta-metragem de mesmo nome de Agata Wieczorek.

A artista, assenta a sua ‘práxis’ de trabalho ao redor do corpo humano. Enquanto sujeito, é pensado sob uma perspetiva emancipada, por vezes política, em situações liminais. Como, por exemplo, quando Wieczorek explora o significante do corpo constantemente exposto à tecnologia, imerso num contexto virtual. O que sobra de real?

Agata Wieczorek, apresenta um extenso portfólio guiado pela crítica à sociedade de consumo e à concepção dogmática da família, por exemplo em Artifacts, onde utiliza de moldes humanos feitos de silicone para questionar a evolução do corpo orgânico intrínseca a interseção entre a medicina e a indústria da tecnologia.

Esta tentativa constante de transgressão da condição finita do corpo humano, segundo a artista, se justifica pela incessante busca pelo crescimento económico, onde múltiplas soluções são criadas para atenderem às necessidades das novas infraestruturas, num ciclo constante e infinito de criações supérfluas.

O meu primeiro contacto com o trabalho de Wieczorek se deu através de Second Skin, mediante uma investigação sobre artistas que, sob a ótica feminista, tratavam da despersonalização dos corpos femininos dependentes da sociedade de consumo. A série de autorretratos nas quais as modelos mascaram-se com trajes de silicone (normalmente usados por homens que praticam female masking fetichista), questiona a despersonalização como uma forma de masoquismo.

A dimensão abjeta do trabalho de Agata Wieczorek partilha uma raíz muito específica que remonta os seus tempos de estudante universitária. Acontece que a artista fora aluna da National Film School em Lodz, na Polónia, onde também estudou Roman Polanski, autor de Rosemary’s Baby (1968). O género do terror, assim como a arte abjeta circunscrevem-se consoante a exploração do desagradável, em oposição à tendência da estetização do mundo[2]. A arte abjeta também se compõe num forte contexto feminista, onde os corpos das mulheres (no amplo sentido queer) são subjugados às ordens sociais patriarcais. Como no caso da gravidez compulsória, e da não concessão ao acesso ao aborto voluntário por muitos Estados.

Há alguns anos, as condições que permitiam uma mulher a realizar um aborto de maneira legal e segura na Polónia, país de origem da artista, viriam a se estreitar. Antes, o termo voluntário de uma gravidez abrangia os casos de malformações do feto. Uma situação que acabou por ser invalidada pelo Tribunal Constitucional polaco em 2021, gerando o levante de milhares de mulheres às ruas do país contra a decisão. Agora, só se pode abortar legalmente no território nos casos de violações, incestos, ou se a saúde da mãe estiver sob risco iminente.

A retração do acórdão judicial foi justificada pelos preceitos conservadores católicos vigentes na Polónia, tornando-se assim o país em solo europeu com o acesso mais dificultado às mulheres que procuram abortar. O Parlamento Europeu condenou a decisão, que fora apontada como mais uma camada ao colapso do estado de direito do país.

É neste ventre conturbado que cresce ‘Growing’, um curta metragem de 17 minutos sobre o evento de algo se desenvolver dentro do seu corpo, (ou a gravidez), onde a palavra de ordem do princípio ao fim é a angústia. O filme segue Ewa, uma estudante de medicina que passa os seus dias imersa num estágio no laboratório de preparação para estudantes com modelos de corpos humanos feitos de silicone ultra-realistas. Em entrevista para a promoção da obra, Wieczorek atestou a característica violenta da utilização dos moldes para este fim, uma vez que reduz a experiência humana de um indivíduo aos limites carnais de um corpo que pode ser reproduzido massivamente. Curiosamente, mas não por acaso, a curta-metragem foi gravada no centro de simulação Presage, da Henri Warembourg Faculty of Medicine da Universidade de Lille, em França. Onde estudantes de medicina se preparam diariamente para o exercício da profissão sem tocar em nenhum corpo… humano.

A protagonista, alertada constantemente pela mãe através do seu telefone sobre o perigo das doenças e dos parasitas expostos no mundo quotidiano, subitamente é acometida por uma epidemia. De repente grávida, sem nenhuma explicação, ou genitor iminente, impossibilitada de retirar o feto e ainda forçada a sentir-se feliz.

Ao ver o filme, sente-se a herança do género do terror a pulsar no ecrã, seja pelo crescimento do feto que remete à angústia de Rosemary, ou mesmo a insurgência parasitária do mesmo enquanto um ícone de Alien, O Oitavo Passageiro (1979).

Facto é que eventualmente, e por motivos que não serão elencados aqui para se manter a surpresa, a protagonista retoma o poder sobre o próprio corpo, por um meio não menos violento do que a é acometida.

‘Growing’ exalta a emergência do body-horror enquanto um mecanismo de acusação de um sistema de situações que assolam metade da população mundial quotidianamente. Se vestem, e despem, se violam, se resguardam, se tiram, se tomam, se colocam e retiram os corpos das mulheres. A curta-metragem ‘Growing’ é uma denúncia através do corpo virtual que habita a realidade contemporânea, e a sua exposição, patente até ao dia 6 de maio em Lisboa, é um marco expandido a não se perder.

 

 

 

[1] Agamben, G. (2008). Qu’est-ce que le contemporain?. Rivages.

[2]Lipovetsky, G., & Serroy, J. (2015). A estetização do mundo: Viver na época do capitalismo artista. Companhia das Letras.

Maria Eduarda Wendhausen (Rio de Janeiro, 2000). Licenciada em Ciências da Arte e do Património pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e é aluna do mestrado em Crítica, Curadoria e Teorias da Arte pela mesma instituição. Estudou também na Sotheby's Institute of Art no curso Writing for the Art World, From Idea to Submission. Atua como escritora e curadora na cidade de Lisboa, Portugal. Colaborou com o Manicómio no espaço de exposições Pavilhão31 e com a Carpe Diem Arte e Pesquisa. A sua última atuação como curadora, realizou-se na ARCOLisboa2022 com a exposição CRACK THE EGG do Prémio Arte Jovem Millennium bcp, em 2022. Em 2023, começou a colaborar com a CentralC como content manager. Escreve regularmente para revistas científicas e especializadas como freelancer no ramo da crítica da arte, assim como features e ensaios académicos, com o intuito de divulgar e promover para o público geral, as múltiplas facetas dos estudos artísticos e os seus desdobramentos na vida quotidiana.

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