No creo en brujas, pero que las hay, las hay: Pagan Days, de Pedro Valdez Cardoso
“Porquê voltar a falar de bruxas?” é a provocação que nos coloca Sara Magno no texto que acompanha a primeira exposição individual de Pedro Valdez Cardoso na NO·NO Gallery, Pagan Days. Através das nove peças que compõem a mostra, o artista lisboeta dá-nos pistas não apenas do porquê, mas, sobretudo, do como voltar a falar de bruxas, magia, paganismo – feminismo, fé, política.
Tudo começa com uma varejeira: The end is the beginning, is the end, is the beginning, is the end… As várias espécies de moscas com as quais convivemos têm um ciclo de vida de cerca de trinta dias, um período breve durante o qual põem entre cinco centenas a dois mil ovos. Com as suas lentes panorâmicas e reflexos paranoicos, estes olhos que tudo veem carregam o destino de uma vida-relâmpago – e, provavelmente, também o de uma morte-relâmpago. Capturada para dentro de um copo de vidro, a mosca que conhecemos à entrada da galeria parece estar ainda à espera de libertação. A despeito de sabermos, é claro, que a sua sina já foi concluída, há uma tensão qualquer que nos faz morder os lábios e roer as unhas para não levantar o copo e deixá-la voar – como quem assiste, com ansiedade, àquele truque de mágica no qual uma pessoa é supostamente presa numa gaiola com água até ao topo. Até quando pode conseguirá prender a respiração?
Quando alude ao ciclo da vida-morte-vida, Pedro Valdez Cardoso está, também, a oferecer-nos uma imagem – ou uma escultura, ou um cadáver – da vida que vibra e persiste até ao seu último limite, até ao seu último instante. A magia, segundo as brilhantes palavras de Isabelle Stengers [1], afasta-nos da busca pela perigosa “verdade” (truth-seeking) e orienta-nos para a descoberta das forças que regem o mundo (strength-seeking), em cada uma das suas pequenas e grandes expressões vitais. Assim, falar de magia é colocar de novo em pauta a questão da vontade (will) – não enquanto arbítrio soberano e livre de consequências, mas, sim, enquanto capacidade de manter, como uma mosca, os olhos abertos, alertas e obstinados.
Não se trata, portanto, de uma questão de crença. Irrelevante é a interrogação “Mas acreditas em bruxas? Deusas? Mágica?” (Arte?) ou a alegação de que tudo isto não passa de uma enorme ficção, um conto de fadas para crianças. A resposta seria uma simples contra-pergunta, acompanhada de um sorriso irónico: então são daquelas pessoas que acreditam que a ficção não tem poder? [2] O que as bruxas desafiam-nos a perceber é que nenhum conceito ou critério científico está acima de ou imune às relações, aos agenciamentos, às trocas mais-que-humanas: o seu ofício é “uma arte da atenção imanente, uma arte empírica que investiga o que é bom ou nocivo” [3], uma avaliação ética muitas vezes secundária nos nossos julgamentos ocidentais – herdeiros dos inquisidores e colonizadores –, tão apegados à dicotomia do real/falso.
Do not go gentle in the night. Bruxas não se deixam resignar – não à toa a sua autonomia e força de resistência foram alvos de tanta perseguição e condenação nos primórdios do capitalismo [4]. Hoje, a luta é análoga àquela das comunidades indígenas, das pessoas racializadas, das culturas oprimidas e das histórias que, porque são provas vivas de outros caminhos possíveis, continuam a ser varridas para debaixo do tapete da grande História. Mas resistem. Como uma borracha qualquer, que viverá por pelo menos 218.000 dias a mais do que uma mosca – e pelo menos 180.000 dias a mais que nós, humanos –, tudo o que é abandonado há, ainda, de retornar das trevas que ignoramos. Ainda que de outra forma, em outra forma. Ecdise: no subterrâneo – da consciência, da terra e da galeria NO·NO –, uma das peças centrais na exposição e mais características do trabalho de Pedro Valdez Cardoso recorda-nos que esta pele, esta estrutura e este sistema um dia não mais nos servirão.
Ficam para trás as bruxas e as cosmologias outras sobre as quais falamos com medo, terror ou desprezo. As palavras de ordem passam a ser “cuidado”, “proteção” e “experiência”. “Magia” deixa de ser uma metáfora moderna para qualificar um bonito pôr-do-sol, uma melodia tocante ou, quem sabe, uma exposição de arte que nos afeta particularmente. Daí, o próximo passo será, talvez, saltar do falar debruxas para falar com elas.
Pagan Days está patente na NO·NO Gallery, em Lisboa, até 19 de maio de 2023.
[1] Discurso proferido pela filósofa Isabelle Stengers em episódio do podcast de entrevistas Magic and Ecology Insurrection, parte do programa de conferências e eventos online Magic and Ecology, organizado e apoiado pelo Centro de Pesquisa em Artes, Ciências Sociais e Humanidades (Centre for Research in the Arts, Social Sciences and Humanities – CRASSH) da Universidade de Cambridge.
[2] Stengers, Isabelle. (2017). Reativar o animismo. Edições Chão da Feira, Caderno n. 62, p. 12.
[3] Ibid., p. 12.
[4] Cf. Federici, Silvia. (2020). Calibã e a Bruxa: As Mulheres, o Corpo e a Acumulação Original. Lisboa: Orfeu Negro.