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Fumos e Espelhos, de Hernâni Reis Baptista

A pele – física e psíquica – aproxima e separa. Seduz e causa repulsão. Protege e esconde. É um órgão imenso, de matizes diversos e densidades variáveis. Mas é também, e sobretudo, uma superfície indelével, que regista, grava – qual prova de contacto – a vida no corpo.

Um sinal é uma manifestação benigna – ou maligna – do meio ambiente em nós; a cicatriz, o imponderável ocasional do sofrimento a que estamos sujeitos desde que nascemos e que deixa linhas ténues e curiosas cravadas no braço, na perna, no pulso; uma estria, a conformação a um corpo plástico, que incha e desincha com o tempo, a ansiedade, a doença; a mancha de nascença, a impressão de uma existência única para o resto da vida.

E o borrão de batom do pescoço, a sombra de cor na pálpebra, o brilho opalino na pele delicada do colo? Exteriorizações de uma vontade transformativa e de uma experimentação que pede libertação e urgência.

A pele é, portanto, um espelho e uma ilusão.

Fumos e Espelhos, de Hernâni Reis Baptista, é um ensaio pictórico e escultórico sobre a pele, os seus contornos sociais e antropológicos, e os comportamentos naturais ou biológicos – numa exposição que abraça o humano, o não-humano e a forma como os seres vivos interagem através desta grande superfície, entre o que tem de aparente e profundo. Neste sentido, não é de todo desajustado recordarmos, em Fumos e Espelhos, as imagens mentais e as associações ao que poderia ser o vitiligo nos humanos, ao engenho evolutivo da camuflagem nos animais, às dermes nervuradas de líquenes que cobrem as rochas e as árvores, à complexa e deslumbrante Begónia que se funde e confunde na paisagem envolvente.

Se as composições pictóricas remetem para as aventuras cromáticas que a maquilhagem proporciona – entre o fingimento, a camuflagem e a transformação – os objetos tridimensionais aludem à questão da sobrevivência, da proteção ou das interpretações lacanianas sobre a imagem refletida e os espelhos. A pele converte-se numa grande tela, recetiva à formação e à transformação, um meio indagatório e exploratório submetido à substância recriadora e estética da Arte.

E apesar de todo o aparato material e formal, do discurso larval sobre a beleza e respetiva e interpretação ao longo dos tempos, há algo de intangível, se não mesmo mágico, que perpassa toda a exposição: a evanescência nebulosa das cores sobre tecidos antigos respigados encontra ressonâncias proustianas naqueles momentos de assombro, quando, na infância, e tal como descrito pelo artista, se experimenta, à revelia dos adultos ou na sua cumplicidade, o espanto de um interior, por vezes desajustado, por vezes oprimido e ocultado, de repente iluminado e pleno de alegria – o rouge na maçã do rosto, o eflúvio de verniz no ar, as pequenas partículas brilhantes no pó do iluminador.

No limite, o que se joga em Fumos e Espelhos é a construção da identidade, da individuação e da subjetividade através destes mecanismos mais ou menos naturais, mais ou menos artificiais, segundo os quais tomamos consciência do nosso corpo, do seu potencial comunicativo, performativo, sexual e expressivo.

Fumos e Espelhos, de Hernâni Reis Baptista, está patente na Kubik Gallery até 6 de maio, no Porto.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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