Procura-se Farleigh
Duas premissas costumam pairar sobre qualquer entendimento do fotográfico: a sua suposta garantia epistemológica de realidade e a sua relação paradoxal com a morte, a partir do corte que opera no tempo. Diante dessas alegações, para as quais inevitavelmente retorna um olhar essencialista sobre a fotografia — critérios basilares para toda crítica possível —, como construir uma imagem que, mesmo depois do disparo, se mantém aberta, múltipla? Que sustenta a tensão e a vida do instante que captura, ainda que de maneira fragmentária?
Tito Mouraz o faz brilhantemente. Na verdade, talvez a questão da ontologia fotográfica só se faça pertinente numa análise do seu trabalho em virtude da radicalidade com a qual o artista a contesta. Nas suas obras, o real dá lugar a uma estranha ficção, o documental torna-se uma espécie de souvenir fantástico de um espaço-tempo infamiliar [1]. Em Farleigh, como em séries anteriores, a observação sensível do território continua a ser ponto de partida para a criação de Mouraz, que penetra com os seus “fingery eyes” [2] pelas fisionomias geográficas de diversas regiões do país. Contudo, se, em duas das suas recentes mostras — Fluvial e Mergulho —, imerge nos fluxos de Beira Alta e dos Açores, na sua primeira exposição individual na 3+1 Arte Contemporânea, o fotógrafo deixa-nos sem coordenadas.
Adianto, desde já, que de nada vale buscar pela sua localização no Google. Sim, há uma vila com o mesmo nome no distrito de Tandridge de Surrey, na Inglaterra. Não é esta a Farleigh de Tito Mouraz. Quem sabe não fica algures pela zona de Twin Peaks? O acesso é restrito aos visitantes da galeria, que vagueiam pelas paisagens emocionais deste mundo tão imaginado quando concreto, tão belo quanto sinistro, como quem espia por uma brecha improvável, com cautela e curiosidade, à espera de surpreender-se. É esta também a posição do artista que olha e descobre através de um pequeno visor, e que parece improvisar uma autoria partilhada com o acaso: Mouraz aproxima-se do seu objeto com o frescor de quem vê pela primeira vez, e recua com o espanto de quem vê pela última vez.
Acompanhamos este jogo pelas fotografias minuciosamente orquestradas pelas salas da 3+1, ora a nos atrair para longe, ora para perto; ora a cores, ora a preto e branco. Tal qual uma palavra que, de tanto ser repetida, tem o seu significado corrompido, o contraste e os contornos das figuras, de tão nitidamente demarcados, começam a parecer abstratos. Pedras deixam ser pedras, casas deixam de ter portas e janelas, corpos deixam de ser humanos. Imploramos para reconhecer o outro num rosto — que, no entanto, nunca se vira à câmara, nunca se vira a nós. Numa relação de extimidade — com a permissão para o uso ligeiro de um conceito lacaniano tão denso como este — com Farleigh, onde algo de nós fica cruelmente exposto, entramos e saímos da exposição com a mesma sensação inacabada de que este terreno fictício suporta algo do sujeito, essa coisa inenarrável — mas que vibra por imagens — nas bordas do maior segredo.
Entre o gesto de mostrar e esconder, Tito Mouraz demonstra-nos, assim, a aptidão da fotografia para fazer mundos, mais do que reproduzi-los. Mundos que existem dentro e fora, aquém e além, aqui e agora, lá e amanhã. Ao conservar a ambiguidade latente do real e a fragilidade implacável do tempo, Farleigh desloca-se do espaço paralisado e eterno do registo fotográfico e persegue-nos, como o fogo que ilumina e incendeia, até aos confins dos sonhos, pesadelos, da memória e da intuição.
Farleigh está patente na Galeria 3+1 Arte Contemporânea até 29 de abril de 2023 e a visita é obrigatória.
[1] Usual tradução brasileira para o conceito de Das unheimliche, mobilizado por Sigmund Freud no seu ensaio homónimo, datado de 1919.
[2] Haraway, Donna. (2008). When Species Meet. Minnesota: University of Minnesota Press, p. 5. Trecho completo: “We touch Jim’s dog with fingery eyes made possible by a fine digital camera, computers, servers, and e-mail programs through which the high-density jpg was sent to me”.