Getting Back to where Appleton belongs, entrevista a Vera Appleton
Nasceu como Appleton Square, juntou uma Box, depois uma Garagem, e hoje continua a reinventar-se. A Appleton é um espaço que contextualiza o que é atual no mundo da arte através do encontro harmónico de várias vertentes artísticas, das artes visuais às performativas e, no seu cerne, experimental. Movida por relações interpessoais, memórias, afetos e amizades, aqui os artistas dizem sentir-se em casa, e a equipa apaixona-se todos os dias pelo projeto que, não fosse o amor à camisola, dificilmente prosseguia resiliente na luta pelas exigentes manhas subsidiárias. A poucos dias do décimo sexto aniversário, a Appleton reabre as portas para uma celebração que ditará o renascimento do programa; em clara evidência do estoicismo de quem nos bastidores, pelo interesse pela cultura, pelo reconhecimento do outro e pelo incentivo ao público, vê neste gesto um prazer, mais ainda, um dever.
Como é que a Vera chegou ao mundo da arte?
Apesar de ter estudado comunicação social, atraída pelo caráter inovador do marketing e da publicidade, depressa me apercebi que estava a adquirir ferramentas que priorizavam um consumo irracional, em vez de estimular funções mais cognitivas. Surge então o meu interesse pelo marketing cultural, tendo sido através do trabalho que desenvolvi neste contexto e em design estratégico que fui amadurecendo o desejo de estabelecer um espaço cultural.
É então que surge a Appleton?
Sim, quando decido trabalhar por conta própria. Naquela altura, sem noções de gestão de um projeto desta envergadura, começo a solidificar a ideia através de sucessivas referências e colaborações. Finalmente, ao deparar-me com este espaço, dá-se um alinhamento perfeito. Não obstante a minha proximidade ao teatro e às artes performativas, a atmosfera neste local sempre foi muito apelativa para as artes visuais. Nesse sentido a Cristina Guerra foi uma inspiração e um contributo vital para a génese da Appleton. Apoiou-me no desenho da programação durante dois anos e as portas abrem-se em 2007 com Laurence Weiner.
Quais os valores fundamentais que regem a atividade da Appleton e que a distinguem de outros espaços neste setor?
A Appleton caracteriza-se por privilegiar os artistas, através de um equilíbrio entre a liberdade da prática artística – sempre calculada dentro de uma responsabilidade ética e profissional, honrando os valores da Appleton enquanto espaço de promoção de arte – e a procura de coerência e lógica na programação, que, por conseguinte, é também ela libertadora. A estratégia é focar em boas equipas e condições de trabalho que possam assegurar, motivar e dignificar o exercício artístico e, simultaneamente, permitir ao autor criar de forma autónoma sem prejuízo da natureza experimental e autêntica.
Que pontos de rutura existiram na história da Appleton que tenham redefinido o projeto?
Existiram três momentos. O primeiro em 2017-2018 aquando da passagem para um modelo sem fins lucrativos. Se por um lado vivíamos uma relação muito próspera com os artistas, a nível financeiro passávamos por algumas dificuldades, já que não podíamos candidatar-nos a apoios, tampouco éramos reconhecidos como galeria. A solução seria a conversão em galeria comercial – totalmente incoerente com tudo o que sempre defendi – ou uma redefinição. É então que a catarse acontece: a programação transformou-se, os ciclos formativos caem, e as dinâmicas ampliam-se a todos os pisos. Nasce ainda a garagem devido à necessidade de voltar à essência da música, do teatro e da performance, o que me leva a convidar o David Maranha e o Manuel Mota para desenharem esta programação.
O segundo momento acontece com a pandemia em 2020 e a suspensão forçada de toda a programação. A meio deste silêncio e precisamente como forma de dar voz a quem não a tinha na altura, floresce o podcast da Appleton, o qual, apesar de ser uma ideia anterior a 2020, se legitima pelo isolamento que se vivia. O mesmo continua a crescer até hoje, com convidados ligados à arte contemporânea que partilham connosco a sua atividade e outras questões relacionadas.
E, por fim, um terceiro momento que estamos agora a contornar, relacionado com a dependência aos apoios do Estado. Perdemos um apoio essencial que nos fez ambicionar e perspetivar a programação de 2023 e resta-nos a possibilidade de obter um segundo apoio, mais simbólico, apenas a partir de junho, pelo que enfrentámos um hiato de meio ano na nossa atividade, daí uma necessidade forçada de reinvenção. Não tivemos outra alternativa que não fechar as portas, um gesto que também consideramos ser uma posição política. O nosso espírito, na verdade, afirmou-se ainda mais na vontade de manter os fees de artista, as condições de trabalho e a qualidade. Não podemos recuar a certas práticas. Porém, fica a dúvida: e se em junho não conseguirmos apoio? O que significa o Estado recusar financiar-nos novamente?
No entanto, aproximamo-nos do aniversário da Appleton. Contra todas as dificuldades, como foi pensada esta celebração e a programação 2023?
O lançamento dos 16 anos acontece a 10 de abril, no dia exato do aniversário. Não podíamos estar fechados nesta data, pelo que temos um Get Back planeado para a ocasião e que, a partir de então, trará uma vez por ano à Appleton autores que já cá estiveram no passado. A curadoria é da Carolina Trigueiros que resgata artistas em específico e projeta uma sinergia entre os dois momentos – como eram há 10 anos atrás e o que mudou na sua prática artística. A Vera Mota voltará assim em junho, entretanto, reforçando a celebração, brinda-nos o Get Back Susana Mendes Silva.
A programação para 2023, por oposição à Garagem, maioritariamente internacional, será uma aposta fortemente portuguesa e intergeracional. Alguns dos cruzamentos artísticos entre a Appleton Square e a Box compreendem trabalhos de: Pedro Tudela e Sara Mealha; Patrícia Garrido e Sara Chang Yang; Vasco Araújo e Isabel Cordovil; António Julio Duarte e Gisela Casimiro; entre outros.
O espectro alargado da Appleton vê-se ainda em múltiplas parcerias. Pode explorar brevemente as relações consolidadas e as suas várias dimensões?
São várias as parcerias estabelecidas pela Appleton a nível nacional e internacional, as quais podem ser trocas de artistas e exposições com outras instituições, muitas vezes enquanto residência artística; ou incluir itinerâncias. Este ano iniciamos uma parceria com o Ateliê Fidalga em São Paulo, local onde enviaremos João Pimenta Gomes para uma residência de criação e apresentação de projeto, e de onde acolheremos Ding Musa que virá expor em setembro. Outras trocas ocorrem, por exemplo, com o espaço londrino SE8 e a nível nacional com a Córtex Frontal, em Arroiolos. Do projeto Itinerâncias serve de referência a colaboração com a Fábrica da Criatividade, em Castelo Branco, ou a ARS Investigação e Desenvolvimento, no Fundão, para a qual criamos programação 2,3 vezes por ano. Importa destacar a Fundación Didac que, mais do que o local aonde levámos as artistas Ângela Ferreira, Fernanda Fragateiro e Luisa Cunha, é como parceiro-irmão em sintonia nos modos de fazer e de pensar.
Outra iniciativa é a bolsa Appleton, nascida da vontade de apoiar um(a) artista de nacionalidade portuguesa e residente em Portugal, para residência no estrangeiro durante cinco meses. O projeto foi lançado em 2018, embora devido à pandemia só tenha avançado no final de 2022. A cidade eleita foi Bruxelas e a bolsa atribuída ao artista Ramiro Guerreiro, que virá em breve ao podcast partilhar a sua experiência. Neste momento, a segunda edição está a ser pensada.
Outra vertente de ação da Appleton acontece a nível educacional, através do projeto Sandbox. Qual é o papel da educação na missão da Appleton? E que frutos se têm colhido deste contacto?
Todos os espaços de apresentação de arte ao público deviam ter por obrigação um projeto educativo, já que é através da educação que podemos mudar a forma como as artes e a cultura são encaradas, até do ponto de vista político. É neste contexto que nasce o projeto Sandbox, uma ligação a universidades e escolas secundárias que trabalham com a nossa equipa – Joana Patrão e José Costa – determinadas exposições, e ainda organizam visitas guiadas. Trata-se de um ambiente de experimentação, onde QR codes estão acessíveis no espaço para partilhar informação sobre os artistas e as exposições patentes, ao mesmo tempo que desafiam o público a envolver-se de forma mais interativa. Apesar de não ter muito tempo de vida e se encontrar suspenso, o projeto proporcionou experiências muito enriquecedoras, e hoje serve-nos como ponto de partida para pensar programas distintos e desenhar modelos mais apropriados.
Existe ainda algum sonho por concretizar?
Este local será sempre o coração da Appleton, todavia, se me é permitido sonhar, imagino ir além deste espaço físico e crescer enquanto centro cultural e lugar de encontro com o ensino e a comunidade. Associado a esta ideia está o sonho de viver num país que valorize a cultura e que, dessa forma, me possibilite a mim – e a todos nesta área – não depender do Estado e de um sistema de subsídios que é incisivo ao ponto de definir os meus sonhos, o meu crescimento ou o meu fim.