Top

Fictional Futures: especular para viver e morrer bem, com e em outros mundos

Uma hipótese recente vem tomando espaço nos meus pensamentos: a de que a nossa conceção coletiva do futuro é e será tão pobre e desencantada quanto a nossa incapacidade de fabular Histórias mais-do-que-humanas. Embora ainda careçam-me as fontes bibliográficas para suportar tal asserção a nível comparativo e científico (será sequer possível apreender as perceções passadas sobre o futuro?; haverá alguma correspondência concreta entre as ficções pretéritas e o estado do mundo atual?), parece-me claro que as narrativas mais arrojadas e revolucionárias que estão a surgir — nas artes, na filosofia ou nos estudos da ciência — são, justamente, aquelas que deliram a própria noção antropocêntrica de um “nós” triste e solitário.

Num momento em que se debate a imprescindibilidade de reparações históricas, quando a Europa vê-se recobrada pelas feridas ainda abertas do seu passado-presente bélico, colonial e escravocrata, pergunto-me, também, a quais desafios éticos nos convocam os mundos extintos de outras espécies. Como remendar tantas relações perdidas? Como refazer os nós desatados para descobrir, ainda, que somos igualmente responsáveis pelo passado e pelo futuro? Como assegurar, hoje, os direitos do ontem e do amanhã?

A resposta não é simples, nem unívoca; mas intuo que passará pela necessidade de resgatar e tecer histórias. Histórias múltiplas, plurais, que nascem no pensamento, materializam-se nos corpos e encontram caminhos para a economia. Não pretendo alegar, tão categórica e imprudentemente, que nos falta imaginação. Há especulação (imobiliária, financeira, factual) de sobra. Falta-nos, talvez, o exercício de imaginar-com: com outros agentes, com outros sentidos, com outras cosmologias, com outras questões. Fictional Futures — que acrescenta o “s” a “futuro” como quem não ignora o + em LGBTQIA+ — fez este esforço parecer fácil. Na Rua das Gaivotas 6, atravessamos uma cortina negra e, de repente, habitamos uma ucronia, a fermentar novos devires. Três espaços encerram três instalações, ativadas a cada dia, de 23 a 25 de março, por uma performance distinta.

As soluções artísticas são simples e versáteis. Na entrada, uma cama ao centro acolhe a imagem projetada de Nina Botkay a envolver Meiga, a sua cadela, e mais dois pequenos dispositivos exibem vídeos a partir das perspetivas de humanos e animais. Na sala rosa, uma câmara microscópica convida o visitante a perceber a si mesmo numa proporção inusitada, estranha. Na sala principal, embebida de um azul brilhante, vê-se apenas um feixe de luz que atravessa vidro e água para fabricar imagens a um só tempo maquínicas e orgânicas. Com pouco, porém, inventa-se muito.

Em ੯∙̀͡ᐡ\’, Maria Ventura, Lui L’Abbate e Nina Botkay desenvolvem um olhar afetivo sobre a relação íntima entre humanos e cães. Diante deste projeto inspirado por Donna Haraway — cujo pensamento feminista e ecológico foi profundamente marcado pela sua longa amizade com Cayenne Pepper, uma pastora australiana —, observamos, com ternura e curiosidade, o jogo espontâneo que movimenta artista e cão, os carinhos trocados mutuamente e as surpresas ruidosas que podem sempre irromper de uma comunicação não-verbal. A princípio, coloco-me algumas grandes perguntas: que histórias podem nos contar os animais? Quais processos temos de percorrer e sustentar para sermos capazes de escutá-los? Depois, apanho-me numa armadilha. Neste protótipo de um imaginário interespécies para o futuro, não cabe todo e qualquer ser não-humano. Não cabem todos os animais, nem, até, todos os cães. Ali, cabem apenas dois nomes: Nina e Meiga. É preciso coragem para reconhecer a particularidade de cada conjunto de relações concretas — como académica, teórica, escritora, ou simplesmente uma humana com o terrível hábito de pensar um pouco mais do que devia, é urgente recordar, a todo instante, que as coisas não existem no mundo para convir às nossas construções conceituais. Num tempo porvir, como num conto de ficção, talvez também a filosofia se faça menos generalista e abrace um ponto de vista, de tato e de fala situado, mas não por isso menos potente. A questão do futuro é uma questão de escala: “quando a cisão de um átomo, ou, mais precisamente, do seu minúsculo núcleo […] destrói cidades e refaz o campo geopolítico à escala global, como pode um compromisso ontológico com a linha na areia que delimita o ‘micro’ e o ‘macro’ continuar a influenciar os nossos imaginários políticos?” [1].

É esta, ainda, a tensão que dá vida à proposta instalativa e performance dust from the stars, uma colaboração multidisciplinar entre AURORA, Catarina Miranda e Internet Jane. Neste espaço sem-tempo em particular, um dispositivo ótico vagueia, com consentimento, por entre as nossas rugosidades, interrupções, continuidades e intensidades, escancarando uma realidade avassaladoramente bizarra. Não há sexo, género, certidão de nascimento ou bio de Instagram que esconda a verdade por trás das nossas definições arbitrárias de identidade: somos um grande amontoado de tecidos, poeiras e texturas, distinto das nossas roupas ou outros objetos inanimados somente por uma singela diferença de padrão e cor. Nunca fomos modernos, nunca fomos humanos. A questão do futuro é uma questão de matéria. Livres para compor um novo, desviado retrato tátil de nós mesmos — um pouco repulsivo, um pouco sedutor —, podemos, enfim, tornarmo-nos alienígenas, vizinhos no mesmo universo ciborgue que AURORA. Com a sua voz suave, gritos penetrantes e presença radical ainda a ecoarem pelas minhas lembranças, imagino um outro futuro onde as nossas prolíferas imagens e preocupações superficiais — do digital à pele, do eletrónico à extração da Terra — servem à desnaturalização profunda de tudo o que tem lugar, massa e volume.

Parece, porém, que o mundo está cada vez mais povoado por elementos sem lugar, massa ou volume. Por isso, o futuro ficcionado por Inês Brites, Gonçalo Guiomar e Natacha Campos nada tem de sólido — é pura luz, reflexo, projeção, número. Nesta ucronia, não há silêncio; ouve-se sempre o zumbido eterno das máquinas. O corpo, em vias de se desmaterializar por completo e viver somente enquanto algoritmo, encontra, apesar disso, razão para ritualizar-se. Na performance EXSVLTET: o único tempo que posso habitar infinitamente é a morte, a Rua das Gaivotas 6 transforma-se num santuário “pós-civilizacional”, e uma missa sem canto celebra aquele que parece ser o último suspiro de uma carne que, persistentemente, ainda se move, ainda deseja, recua, experimenta. A questão do futuro é, também, uma questão de luto. Que cerimónias deverão nascer para dar conta de elaborar mortes e desfechos outros?

Estas são perguntas que demandam ações: como lindamente escreve uma das grandes mestras e amantes da ficção científica, Ursula K. Le Guin, “a ética floresce no solo intemporal da Fantasia, onde as ideologias murcham na videira” [2]. Há – e tem de haver – futuros para além do futuro que se apregoa. E se este é já possível no plano do imaginar, então não há nada, verdadeiramente, que o impeça de ser possível no plano do realizar.

Fictional Futures roubou-nos do presente, de súbito, nos dias 23, 24 e 25 de março, na Rua das Gaivotas 6.

 

 

 

[1] Barad, Karen. (2017). “No small matter: mushroom clouds, ecologies of nothingness, and strange topologies of spacetimemattering”. In Arts of Living on a Damaged Planet: Ghosts and Monsters of the Anthropocene. Minnesota: University of Minnesota Press, p. 108. Tradução livre.

[2] Le Guin, Ursula K. (1974). “European SF: Rottensteiner’s Anthology, the Strugatskys, and Lem”. In Science Fiction Studies 1, no. 3, p. 184. Tradução livre.

Laila Algaves Nuñez (Rio de Janeiro, 1997) é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para a imaginação e o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH), colabora profissionalmente com iniciativas e instituições nacionais e internacionais, como a BoCA - Biennial of Contemporary Arts, o Futurama - Ecossistema Cultural e Artístico do Baixo Alentejo e, enquanto assistente de produção e criação de Rita Natálio, a Terra Batida.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)