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Haver um voo

(Por uma muito afortunada coincidência, visitei esta exposição na companhia de Ernesto Ceriz. Artista, pensador incansável e instigante, aquela visita conjunta determinou algumas das impressões que aqui deixo.)

O ponto de partida da exposição O Dia Soturno foi uma reflexão em torno das ideias de inspiração e criação artística. O mote é dado pela imagem da melancolia que Albrecht Dürer fixou numa das três gravuras produzidas entre 1513 e 1514 e nas quais fez convergir os conceitos da escolástica medieval: O Cavaleiro, a Morte e o Diabo – a moral; São Jerónimo no Estúdio – a atividade intelectual; e Melancolia I[1] – o mundo teológico e contemplativo. A figura que o artista alemão deu à ação contemplativa é representada pelos traços de um ser amargurado, possivelmente num momento de crise criativa, como é apontado por críticos que leem na gravura um autorretrato de Dürer. Ao tempo em que produz a gravura, a dobragem histórica da medievalidade para a época que veio a convencionar-se como Renascimento, a melancolia era um dos quatro humores que governavam o ser humano. Desse estado de pesar poderia resultar a loucura, mas era dele, igualmente, que advinha o impulso estético, o génio artístico. É o instante soturno, o momento de angústia que se imobiliza no rosto daquele ser pensativo, de ferramentas no chão e agrilhoado pelo tempo (com o relógio de areia por cima da cabeça, um anjo à sua frente a tomar notas num pequeno caderno e, distraído, um compasso na mão direita). Como viver esse momento? Como representar, hoje, a angústia da criação, uma tal soturnidade, uma tal melancolia?

A resposta corporiza-se nas cinco peças exibidas na igreja do Convento de Santo António, em Loulé, de dois artistas cujo percurso tem passado nos últimos anos por esta região. O templo dessacralizado é um dos espaços municipais artisticamente mais dinâmicos da cidade e tem beneficiado da colaboração com Miguel Cheta, curador da presente exposição e responsável por algumas das mais interessantes propostas ali mostradas nos últimos anos. Sublinhe-se que este município tem disponibilizado o edifício do convento para mostras de alunos finalistas do curso de Artes Visuais, da Universidade do Algarve, num gesto que celebra a prática artística enquanto elo entre o mundo académico e a comunidade que o engloba – e que tanto Miguel Cheta como Patrícia Serrão e Edgar Massul integraram e colaboram com o dito curso.

A proposta foi, pois, a de apresentar peças construídas propositadamente para a ocasião e para o espaço desta exposição (são todas de 2023), através das quais se pensasse o sofrimento relacionado com a criação artística, ou esta entendida como resultado de um esforço contemplativo, de um estado de amargura criativa. “Anunciação. Anjo calmo, barco lento, ondulante montanha” (Massul) acolhe todo o espanto do visitante: assim que entra na galeria, o vão do edifício revela-se sublimemente ocupado por uma longa e pesada fiada de ramos de “eucalipto seco de São Brás de Alportel”, amarrados entre si por cinturas de pano cru, parcialmente disposta no chão e parcialmente suspensa no ar pela força de cabos de aço à entrada do convento e ao fundo, na zona que foi do altar. Antes do título (que remete para a Annunciazione de Leonardo Da Vinci, outra obra renascentista), antes da relação sugerida pela gravura de Dürer, este corpo negro a fender ar e chão traz consigo envios contemporâneos, angustiadas remissões a monstros de filmes de ficção científica, ameaçadoras serpentes de Dune (David Lynch, 1984), ou o dorso ondeante de um cão que percorre a paisagem nevada da “Estação 4” do Instituto Nacional de Ciência dos EUA, na sequência de abertura de The Thing de John Carpenter (1982). Pode ser, como sugere a folha de sala, a bílis negra expelida por um baço que, no final da Idade Média, sofre de excesso do humor melancólico; mas é igualmente a quilha de uma embarcação, esqueleto de uma nave salvífica a dirigir-se à luz que inunda um altar antigo. (Em julho do ano passado, na exposição em que colaboraram Edgar Massul e Ângelo Gonçalves, no espaço da Associação 289, em Faro, uma das peças mais impactantes era a estrutura de uma barcaça construída em canas e com boias de negras câmaras de ar, a ocupar várias divisões do prédio das Pontes de Marchil). No final desta sequência enegrecida, só visíveis com a aproximação de quem visita, uma de cada lado da Anunciação… veem-se duas fotografias complementares, identificadas como pertencendo à série Ondulantes Montanhas, Dias Mudos(Massul). São imagens de duas montanhas aproximadas e do vale que formam: no espaço entre as elevações, o ar é metálico, profundamente dourado. Cada uma de um lado do altar, e com subtis diferenças entre si, dialogam com a serpente escura, acolhendo-a, aguardando para a abrigar – a Anunciação trará para a terra a notícia da obra, o anúncio da criação enfim desvelada? É o começo da exposição, mas pode entender-se como o seu fim, quando a visitante dirige os passos às duas salas laterais do convento para encontrar em cada uma delas a privacidade da angústia. Não é na negritude da Anunciação que se esconde, afinal, o soturno (pois aquela culmina na visão dourada de uma terra que se alcança para lá dos obstáculos que as montanhas representam), mas na obscuridade de espaços interiores, íntimos, subterrâneos – nas duas magníficas peças de Patrícia Serrão.

Weeping Alice é uma sequência de vídeo de pouco menos de 7 minutos, a cores e sem som, projetada em loop sobre tecido branco com bainha ornamentada. Em grande plano, uma mulher verte lágrimas: exibe, agora animado, o imóvel estado de ânimo do criador da gravura de Dürer. À entrada da câmara de projeção, quase impercetível, um frasco de perfume, peça da passagem do século XVIII para o XIX, serve como lacrimatório e guarda cinco precisas gramas de sal – essência de lágrimas. A outra peça encontra-se na capela lateral, do lado direito de quem entra na igreja. On the Frailty of Human Bonds é uma impressionante instalação de sal-gema sobre pano cru e placas de vidro. Para a compor, o município e a empresa que explora a mina de sal-gema em Loulé ofereceram 12,5 toneladas de sal-gema, extraídas e transportadas para a galeria (numa operação que exigiu extraordinárias medidas logísticas). Dessas, Serrão utilizaria 9 toneladas para dispor em forma de montanha na capela lateral. Mais familiarizada com peças escultóricas de pequeno formato, Serrão arriscou aqui uma escala nova, cujo resultado revela um à-vontade e uma experiência a que poderá não ser alheio o trabalho de curadoria: em junho de 2021, Miguel Cheta foi um dos artistas que produziram O osso do mar, instalação multiartística no espaço subterrâneo da mina de sal-gema de Loulé, com Christine Henry e João Caiano – uma das obras ali apresentadas resultava de um trabalho de luzes e projeção sobre uma montanha de sal-gema. Mas este ensaio de Serrão sobre a fragilidade dos laços humanos tem o fulgor de um espaço desenterrado e trabalha em relação estreita com a instalação na sala oposta. Nove placas de vidro, verticalmente alinhadas, ferem o cume da montanha construída por Patrícia Serrão e comunicam, na transparência, com as imagens da Alice lacrimosa, e, no material, com o frasco onde o sal se encerra. As placas sobre o fio da montanha são como lamelas num laboratório nas quais se escanda a composição do lamento. A aparência escurecida do sal, utilizado na sua forma menos depurada, ilude a visão – mas o suor deste sal não deixa margem para dúvidas: no rebordo do pano que cobre o chão onde assenta o monte salino, com a passagem do tempo desde que ali foi instalado, o sal exsude água na forma de pequenas pérolas: a criação persiste em ser criada. O processo criativo é produtivo quando emerge das profundezas da terra, é da mina subterrânea que vem o humor da arte (para se elevar ao céu, a Anunciação de Massul tem de rastejar).

A exposição O Dia Soturno de Edgar Massul e Patrícia Serrão, com curadoria de Miguel Cheta, é o arranque, em 2023, da terceira edição do ciclo do Programa de Apoio às Artes (PAA) do Município de Loulé. Está patente até 15 de abril na Galeria Municipal do Convento de Santo António.

 

 

[1] As três gravuras integram a coleção do Museu Metropolitan de Nova Iorque.

Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.

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