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Ex-votos: perseguir a transcendência pela arte num tempo desencantado

Ao leitor que – muito provavelmente – não conhece esta autora que vos escreve, um facto sobre a minha vida será importante para a descoberta deste artigo: há pouco mais de cinco anos, eu perdi a minha mãe. Sim, obrigada, já está tudo bem. Dias e noites se passaram, um avião cruzou o Atlântico e, dois diplomas e um piscar de olhos depois, são já três os anos em que as faturas chegam em euros e não em reais.

Por um lado, a cor de um novo céu e as pedras dos novos caminhos desvendaram muitos fascínios amortecidos; por outro, preciso confessar, um pouco da fé se perdeu nessas duas grandes passagens – e, desde então, sem que eu sequer notasse, até as minhas investigações académicas começaram a perseguir o problema da ausência e da transcendência. Foi assim, quando de repente estava a debruçar-me sobre a obra de Emmanuel Levinas para responder a uma questão ecológica num mestrado em Estética, que percebi que aquilo que emergiu límpido no intelecto e na teoria tinha raízes profundamente atravessadas no meu corpo lacrimoso. Uma epifania: sinto falta do Brasil, mas sinto ainda mais falta de sentir-me conectada a uma existência distante, geográfica, temporal e espiritualmente.

De forma intuitiva e irrefletida, essa mesma inquietação levou-me até à Rua de São Pedro de Alcântara para visitar a mais recente exposição da Brotéria, Ex-votos. Inaugurada a 24 de fevereiro e com curadoria de Marta Costa Reis e Catarina Silva, a mostra reúne quase inteiramente obras originais de 13 artistas que, a partir da joalharia, desenho, escultura e pintura, apresentam variadas visões acerca das suas – nossas – relações concretas e simbólicas com o metafísico. Tratam-se de objetos extremamente pessoais, nas margens entre os territórios da arte, do culto e do oculto, desde o diário de recuperação catártico de Roger Paulino (STROM. Stories from Kreischa, 2021) até amuletos ou peças de vestimenta, concebidos para estarem em contacto direto com a pele, como os colares de Marília Maria Mira (YouAndMe e MakeMeAllBodyAndSoul, 2023). Ainda assim, versam, talvez, sobre um diagnóstico coletivo de desencantamento, sintoma de um mundo que se vira para a imanência como o último subterfúgio e aventura de um racionalismo que quer fugir de si.

É impossível, indesejável até, suprimir a dimensão explicitamente religiosa de Ex-votos, indicada no seu próprio nome. Contudo, a noção de encanto permite-nos também avançar para outros desdobramentos, outras esferas. No ano em que a Brotéria comemora o seu 120.º aniversário com um programa que pensa a criação conjunta de bons lugares (eutopos), a prática do encantamento irriga-nos de “possibilidades de liberdade” pela integração entre “o visível e o invisível (materialidade e espiritualidade) e a conexão e relação responsiva/responsável entre diferentes espaços-tempos (ancestralidade)” [1]. Sob um ponto de vista político e ecológico, o sobrenatural traduz-se na capacidade de imaginar, com esperança, confiança e participação, novas estruturas para além das atuais “contratualidades raciais, hétero-patriarcais, teológico-políticas e antropocenas” [2].

Assim, mais do que objetos contidos em si mesmos, condensadores de experiências do sagrado individuais, os ex-votos representam um compromisso material com o futuro incerto. Na sala que conjuga as obras de Maja Escher, Tamia Dellinger e Marta Costa Reis, o engajamento com a promessa de abertura para um outro mundo surge, precisamente, do apelo à ativação daqueles objetos em comunidade. Do barro vermelho que constitui Mastro (2023) e Nascer do Sol (2019), da primeira artista, hasteia-se a bandeira de um tempo no qual não falta água para todos os seres. A água reaparece como mote na peça de Dellinger, uma das criações mais mágicas ou xamânicas na exposição, uma espécie lençol-avental que carrega as marcas efémeras do mergulho no mar, do suor, do sangue, de pedras e joias realizadas e coletadas pela artista nos últimos anos: um verdadeiro Altar (2022) de memórias para ser vestido, deslocado, oferecido, desperto. Em I give so you may give (2023), da terceira artista e curadora da mostra, o símbolo ancestral da ânfora dá forma a vários pequenos pingentes em prata – uma referência a objetos votivos comuns em Espanha, Itália ou Grécia, que carregam silhuetas tradicionalmente humanas e com algum volume – distribuídos numa espécie de rede vertical que liga o chão ao teto da galeria.

A imagem desses vasos milenares não deixa de invocar a alegoria do objeto contentor, este que, segundo propõe Ursula K. Le Guin, no seu brilhante ensaio A Ficção como Cesta: Uma Teoria [3], é capaz de recontar toda a história da humanidade a partir da origem da tecnologia como um saco para transporte e partilha, em vez de uma arma de dominação. Está em causa, aqui, a força das narrativas e das palavras para a articulação de uma fábula alternativa a esse mundo de heróis, condenado à guerra e à pobreza unificadora do Mesmo. Em Ex-votos, há, portanto, também um pedido em curso por uma dádiva ainda não concedida, mas cujo anseio é já confrontar o mistério e beber da sua vitalidade. Nesse sentido, é esperado que algumas obras permaneçam inexplicadas, inefáveis, como o casal de cetros-poemas de Catarina Silva (Grande Ceptro do Amor, 2022, e Ex-Voto, 2023) – somente a sua presença basta para conjurar outras coreografias e rituais do sensível, driblando e enfeitiçando “as lógicas que querem apreender a vida em um único modelo, quase sempre ligado a um senso produtivista e utilitário” [4].

Eu, que ando a correr atrás da transcendência, numa tentativa desesperada de experimentar o reencanto do mundo pelo meu próprio, senti que, por pelo menos uma tarde, finalmente a encontrei.

Ex-votos está patente na Brotéria, em Lisboa, até 25 de março de 2023.

 

 

 

 

[1] Simas, Luiz Antonio; Rufino, Luiz. (2020). Encantamento: sobre política de vida. Rio de Janeiro: Mórula, versão digital, n.p. Disponível em < https://morula.com.br/wp-content/uploads/2020/05/Encantamento.pdf>.

[2] Ibid., n.p.

[3] Le Guin, Ursula K. (2022). A Ficção como Cesta: Uma Teoria e outros textos. Lisboa: Dois Dias.

[4] Simas; Rufino, op. cit., n.p.

Laila Algaves Nuñez (Rio de Janeiro, 1997) é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para a imaginação e o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH), colabora profissionalmente com iniciativas e instituições nacionais e internacionais, como a BoCA - Biennial of Contemporary Arts, o Futurama - Ecossistema Cultural e Artístico do Baixo Alentejo e, enquanto assistente de produção e criação de Rita Natálio, a Terra Batida.

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