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Oficinas do Convento e o trabalho da terra que acende a cidade

Tiago Fróis (diretor artístico) e João Rolaça (Investigador e programador).

Desengane-se quem crê numa vida cultural em Montemor-o-Novo de fácil exame. A cidade, que fervilha com uma agenda agitada, leva as associações culturais a debaterem-se por tempo de antena, e a Oficinas do Convento (OC) é um desses casos. Ramificando-se pela cultura, artes plásticas e património, a programação ganha ritmo pela ligação a Montemor, em íntima colaboração com agentes culturais e artistas locais, em profundo respeito às condicionantes do lugar e num abraço ao legado material e imaterial. Os frutos esses, colhem-se como mais valias culturais para o habitante: criações artísticas que intersetam gerações e disciplinas, passado e futuro, comunidade nacional e internacional; capazes do resgate de saberes e técnicas que hoje se investigam e reinventam, numa constante descoberta e ativação do espaço urbano e da arquitetura tradicional.

Nas palavras da equipa, OC cria reservas onde as pessoas se podem encontrar para a conspiração, ou não fosse o “ativismo” característica inerente a quem um dia se uniu para desassossegar Montemor e colocá-la no radar da produção e divulgação artístico-cultural portuguesa.

Como nasceu a OC?

Ainda que formalizada em 1996, a associação surge antes, no seio de um grupo de artistas plásticos e outros que partilhavam uma preocupação pelo desenvolvimento local na cidade de Montemor-o-Novo. Tínhamos consciência de que seria mais fácil desenvolver um projeto a operar enquanto coletivo, e assim, por fins estratégicos, se fundem a Marca – associação de desenvolvimento local – e a OC – associação cultural ligada às questões de programação cultural e à criação.

Quando assumimos a sua gestão, o Convento de São Francisco (outrora estaleiros municipais) encontrava-se ao abandono, mas possuía um atelier cedido pelo município a artistas. Altura em que fizemos um levantamento dos telheiros – unidades de produção tradicional de tijolo – e o projeto começa a desenvolver-se num sentido de reabilitação destas infraestruturas e de reanimação da produção da cerâmica. Movia-nos a prospeção da terra e da matéria-prima local, com a motivação de atualizar a tecnologia trazendo-a ao presente, promovendo o cruzamento, a atualização e a adaptação de técnicas e tradições ao contexto contemporâneo. Se por um lado somos muito ligados ao património e ao passado, por outro articulamo-lo numa perspetiva de presente e futuro.

Que impacto reconhecem na cidade ao longo destes 27 anos de atividade? Qual a importância das organizações culturais nesta transformação?

É curioso reconhecer que das onze pessoas que compõem a equipa, a maioria não é natural de Montemor. Hoje estão aqui porque a estrutura que criámos e o trabalho que promovemos, de forte cariz colaborativo, intersecional e multidisciplinar, liga-nos ao contexto e às pessoas locais e permite o apoio e o desenvolvimento de projetos. Fatores que favoreceram a expansão e a fixação da comunidade neste território. E, claro, o papel crucial da política cultural local ao ceder-nos um espaço que foi, e é, essencial para as coisas acontecerem.

A própria OC esteve na origem, direta ou indireta, de outras associações, com as quais mantemos uma relação saudável e cooperativa, através da solicitação de equipamentos, equipa, ou outras questões programáticas. Aliás, está no ADN das associações culturais esta partilha; sendo muito à custa desta ligação entre entidades que a cidade tem hoje uma enorme oferta e que os seus recursos se multiplicam. Tanto que de momento procuramos programar para a periferia, como é o caso do festival PreOcupada, que começou no centro de Montemor, mas agora se mudou quase na totalidade para a aldeia de Casa Branca, a 20 km. Avançamos em prol das oportunidades e da necessidade de descentralizar, mas também por forma a dinamizar e atrair a atenção para outros espaços que constituem novos desafios e, inevitavelmente, nos aproximam da comunidade. Todos os locais têm potencial do ponto de vista artístico, comunitário, social, ou mesmo de sustentabilidade.

Precisamente nesse sentido e enquanto espaço de criação e reflexão, de que forma as preocupações da OC vão além do seu contexto local para abraçar o que é urgente no mundo atual?

A ideia de centralidade na associação, isto é, de que o centro está onde estivermos, faz-nos estar implicados no encontro de soluções e condições que possam fermentar outro tipo de ativismos. Move a OC criar uma rede cooperativista, articulada com várias camadas da vida contemporânea: habitar, fruir, relacionar, cuidar; linha de pensamento que é intrínseca ao nosso ADN e maneira de programar. Um exemplo das nossas preocupações revela-se na parceria com o BI0N – Building Impact Zero Network, uma rede de intercâmbio de organizações europeias ativas em técnicas de construção de baixo impacto.

Diríamos que o impacto da OC advém da sua dimensão global, ainda que o ponto de partida seja o local e o muito específico – o que está à nossa volta e como vamos construir com esse(s) recurso(s). Damos um grande destaque à terra porque é uma matéria-prima acessível, disponível no nosso território, com potencial de criação, contudo, numa noutra região a construção seria feita com outros materiais; mas parte  desse mesmo princípio de atuação e criação a partir do local. Questões que fazem sentido aqui e agora, mas que alcançam problemáticas mais universais e contemporâneas.

O projeto das Oficinas da Cerâmica e da Terra constitui uma parte significativa da vossa identidade. O que distingue os seus espaços e qual a relação com o Convento de S. Francisco?

A OC engloba quatro unidades complementares – o Convento de S. Francisco, o Centro de Investigação Cerâmica, o Laboratório de Terra e o Telheiro da Encosta do Castelo – cuja expansão ocorreu numa orgânica de produção e gestão de recursos, associada a um trabalho colaborativo, de trocas e voluntariado. O Convento é a sede e está voltado à produção mais artística e criativa; as restantes unidades compõem as Oficinas da Cerâmica e da Terra. O Centro de Investigação Cerâmica é uma oficina de trabalho artístico em cerâmica onde decorrem residências artísticas, formações e outros eventos e experiências, e que está aberto à utilização por parte da comunidade artística e não artística, local e não local. O Laboratório de Terra é um espaço dedicado à arquitetura em terra crua e às técnicas construtivas, onde decorrem igualmente formações (muitas delas de âmbito internacional). E o Telheiro da Encosta do Castelo é uma unidade de produção artesanal de tijolo que usa barro local e coze com técnicas tradicionais, cruzando a dimensão produtiva e vernacular com a criação artística contemporânea, cruzando os mesmos materiais e processos. Um espaço de investigação, inovação e experimentação a partir do local e das práticas e tecnologias de outrora.

Esse cariz cooperativo leva-me a questionar a dinâmica de participação na OC. Os artistas residentes também se envolvem na (re)construção do espaço?

Quando se trata de manutenções que não requerem um conhecimento técnico ou recursos muito específicos, poderão ser equipas de voluntários e outras pessoas que vão ganhando autonomia dentro da estrutura a fazê-lo. Há situações em que os utilizadores do espaço nos propõem soluções. Por outro lado, as residências constituem motores de pesquisa em temáticas que nos interessam e consideramos pertinentes para um futuro próximo, procurando articular a investigação desenvolvida com as nossas necessidades.

Operamos de forma aberta e privilegiamos a proatividade. As pessoas que se juntam ao projeto podem fazê-lo de maneira autónoma, alugando o espaço, mas também podemos estabelecer relações de troca, nas quais cedemos o espaço a alguém que nos empresta o seu know-how, colaborando connosco em diferentes necessidades. Garantimos assim, uma transmissão de metodologias e valores e abrimos a possibilidade de interação e colaboração de todo o tipo de públicos com a nossa estrutura, seja do ponto de vista mais comercial ou no apoio à criação artística mais jovem/emergente.

O que podemos esperar na programação da OC para 2023?

Um cruzamento de várias áreas disciplinares complementares, resultado quer da cooperação internacional com outras entidades, quer de foco nacional, ou por vezes totalmente centradas no contexto local.

Destacamos o projeto internacional SEEDS – Desenvolvimento Sustentável de Ferramentas Artísticas – o qual se baseia em residências artísticas e alia arte e sustentabilidade para a criação de materiais e ferramentas artísticas desenvolvidas com técnicas e metodologias sustentáveis. Outras residências, como a de design de produto, de sonoscultura e uma outra que pensa o tijolo enquanto matéria e discurso para a criação; há ainda um projeto de residências artísticas com curadoria repartida e articulada entre Oficinas do Convento, Osso Colectivo (São Gregório, Caldas da Rainha), Maus Hábitos (Porto) e Pó de Vir a Ser (Évora).

No calendário de eventos próximos salientamos a exposição “Mater”, com inauguração a 23 de Março no Pavilhão Branco das Galerias Municipais de Lisboa, a qual nasce da intenção de explorar o trabalho de três artistas de longo historial e relação próxima com a OC. E, claro, o evento anual “Pre0cupada”, que acontece nos finais de junho em colaboração com outras associações, e prioriza propostas de criadores em residência. Para fechar, várias masterclasses e workshops relacionados com as artes da terra e da cerâmica, técnicas construtivas, serigrafia, e fabricação digital para processos artísticos

Mestre em Estudos Curatoriais pela Universidade de Coimbra, e com formação em Fotografia pelo Instituto Português de Fotografia do Porto, e em Planeamento e Gestão Cultural, Mafalda desenvolve o seu trabalho nas áreas de produção, comunicação e ativação, no âmbito dos Festivais de Fotografia e Artes Visuais - Encontros da Imagem, em Braga (Portugal) e Fotofestiwal, em Lodz (Polónia). Colaborou ainda com o Porto/Post/Doc: Film & Media Festival e o Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema. Em 2020 foi uma das responsáveis pelo projeto curatorial da exposição “AEIOU: Os Espacialistas em Pro(ex)cesso”, desenvolvido no Colégio das Artes, da Universidade de Coimbra. Enquanto fotógrafa, esteve envolvida em projetos laboratoriais de fotografia analógica e programas educativos para o Silverlab (Porto) e a Passos Audiovisuais Associação Cultural (Braga), ao mesmo tempo que se dedica à fotografia num formato profissional ou de, forma espontânea, a projetos pessoais.

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