Sopro de André Cepeda e Alka-Seltzer de Jorge Queiroz no Rialto6
Sopro e Alka-Seltzer são as duas mais recentes exposições do Rialto6. Sopro é uma exposição individual de André Cepeda (Coimbra, 1976), artista que tem utilizado a fotografia para explorar o tecido urbano das cidades, aprofundando através dela uma relação íntima e sensível com o espaço. Em Alka-Seltzer, Jorge Queiroz (Lisboa, 1966), artista que tem construído nas suas pinturas e desenhos um rico imaginário pessoal, apresenta uma surpreendente, imponente e imersiva instalação.
Impulsionado por uma incessante busca pela experimentação e criação de novos olhares e outras formas de se relacionar com o espaço, André Cepeda apresenta pela primeira vez em Sopro um vídeo, algo que há muito queria fazer, mas que até aqui ainda não tinha concretizado. Na verdade, este assume-se como um desenvolvimento natural do seu trabalho, uma vez que a imagem em movimento fez, desde cedo, parte do seu processo criativo. Partindo de uma íntima e pessoal reflexão acerca da experiência e consciência percetiva e vivencial da cidade, desde os 18 anos que filma, principalmente em super8 e 16mm, para se relacionar, explorar e apropriar dos lugares sobre os quais trabalha, tendo vindo desde então a constituir um enorme arquivo pessoal.
Sopro, o vídeo que agora nos apresenta, para o qual trabalhou durante mais de um ano, é composto por sete planos fixos, fragmentos espaciais e temporais destacados do curso normal do tempo. Neles vemos duas mulheres, retratadas num momento de suspensão, entre tempos e ações, deitadas no chão de um terreno baldio, olhando o céu. Ações livres, naturais e espontâneas, retiradas de um fluxo. Planos que se dão à expansão dos limites temporais, exponenciando a diluição das especificidades do meio fotográfico e videográfico, onde a imagem, na sua quietude, se parece distender, dando-nos a ver pequenos gestos e subtis respirações.
O vídeo termina com a imagem de quatro pilares em betão armado. Fascinantes pontos de atenção, presenças continuadas do passado num terreno baldio, lugar marginal e periférico, estranho à eficácia produtiva da cidade e resistente à normatividade dos centros de poder. Nesta imagem, tal como noutras de André Cepeda, percebemos o modo como Walter Benjamin entendia a cidade enquanto duração[1], onde a nossa presença e as nossas ações se inscrevem, revelando a forma como experienciamos, habitamos e abandonamos os lugares, estabelecidos entre a perda e a reconfiguração, entre ausências e presenças, memórias e esquecimentos. Os planos que constituem este vídeo, tal como os lugares que ele retrata, parecem viver numa condição expectante que se abre à possibilidade, ao inesperado, a outros tempos, ações e pensamentos. Lugares marcados pela memória do passado, mas que se constituem simultaneamente enquanto promessa, de encontro e liberdade.
É na sequência deste trabalho, perante aquelas quatro colunas, aquela ruína contemporânea, que André Cepeda vai ao encontro da origem da cidade que há tantos anos fotografa, embarcando numa pesquisa muito pessoal, de curiosidade e necessidade. Esse caminho, assente num longo processo de pesquisa e preparação, leva-o até à Grécia, «ao berço da “humanidade” europeia»[2], como refere Joerg Bader, curador da exposição. A nós, leva-nos da escuridão à luminosidade da cave do Rialto6, onde encontramos as fotografias que o artista realizou no Partenon, templo erguido em honra da deusa Athena Parthenos, protetora da cidade de Atenas. Sob a visão sensível e exploratória de André Cepeda, aquela ruína, cuja imagem é amplamente conhecida, difundida precisamente através da fotografia, adquire um carácter simultaneamente familiar e estranho. De facto, são olhares inusitados, novos, fragmentários, abertos às contingências espaciais, focados na intensidade com que a radiante luz solar incide sobre o mármore, adquirindo uma dimensão quase espiritual. Fotografias que nos transportam para uma intimidade silenciosa, que de outra forma nos pareceria inalcançável, num lugar que sabemos ser massivamente visitado.
De volta ao escuro, a exposição encerra com a projeção em slide de um retrato fotográfico. O som do aparato tecnológico marca o tempo, a cadência com que o rosto de um homem se vai revelando, subtilmente movendo, até nos encarar.
No arco temporal que a exposição comporta, entre a escuridão e a claridade, o passado e o presente, André Cepeda revela-nos o modo como os mais privados gestos se articulam com narrativas sociais e histórias mais abrangentes e longínquas.
Do universo contemplativo do Sopro de André Cepeda, passamos ao piso superior onde encontramos o universo efervescente de Alka-Seltzer, de Jorge Queiroz.
A exposição retoma o concerto-instalação que o artista realizou em outubro de 2020, na Appleton, como resposta a um desafio colocado no verão desse mesmo ano pelo músico David Maranha, com quem colaborou na concretização do projeto. Expandindo o que então apresentou, no Rialto6, realiza uma imersiva instalação, com a qual nos relacionamos, antes de tudo, pelo som de três alka-seltzer, nas quais Jorge Queiroz pintou um pássaro, e colocou depois a dissolver. O som do comprimido em diluição, simultaneamente familiar e estranho, comporta em si mesmo uma duração determinada, cuja perceção temporal, habitada pela expectativa e a antecipação, parece expandir. Mapeada por três focos de som em diferentes locais do espaço expositivo, a espacialização sonora, entre sopros e o chilrear de pássaros assobiados, ativa de forma reverberativa uma constelação de memórias e imaginários.
É para esse universo que somos também transportados pelo conjunto de imagens e movimentos em expressão no vídeo projetado sobre o corpo de uma monumental e tentacular criatura, que habita e se espraia pelo espaço expositivo. Tendo como referência a lula de 8,20m e 207 kg que em 1972 os responsáveis pelo arrastão bacalhoeiro Elizabeth ofereceram ao Aquário Vasco da Gama (onde se encontra em exposição), foi instalado no Rialto6 um polvo de 80m de tecido branco, que se dobra e desenrola sobre si próprio, e cuja cabeça, corpo e tentáculos conseguimos reconhecer. É sobre ele que vemos o registo fílmico da alquímica transformação do alka-seltzer. Em seis pontos diferentes do espaço expositivo, o mesmo vídeo é projetado de forma dessincronizada. Nele, para além dos comprimidos efervescentes em dissolução, vão surgindo brinquedos, desenhos de pássaros, modelos de pagodes chineses, copos de água. Personagens de uma ficção na qual podemos deambular e participar.
Como Sérgio Fazenda Rodrigues refere na folha de sala, em Alka-Seltzer potencia-se a diluição das especificidades dos registos utilizados, numa «experiência singular que se dilata do desenho ao objeto escultórico, da instalação à inscrição sonora, e do assento audiovisual à ambiência cenográfica». É através desta ambivalente intervenção que Jorge Queiroz altera a experiência física e sensorial do espaço, que assume simultaneamente um caráter exuberante e uma calma que nos convida a perdurar.
Caminhamos. As imagens vão-se desvelando, surpreendendo-nos, deixando-se transparecer pelas dobras do tecido. Caminhamos. O som vai-se sincopando, crescendo e decrescendo. Caminhamos. No encontro com os feixes de luz, a sombra das nossas pernas, dos nossos braços, do nosso corpo, projeta-se na criatura tentacular e nas paredes do espaço expositivo, que se torna assim multiplamente habitado. É também por esta força que a exposição não se esgota, constituindo-se na constante transformação e imprevisibilidade.
Na deriva pelo espaço vamos descobrindo um conjunto de doze trabalhos em papel que ocupam as paredes. Estes têm origem num pequeno postal holográfico, que encontramos nas escadas que dão acesso ao espaço expositivo. Ampliado e serigrafado, é posteriormente intervencionado. Sobre e sob dois pássaros que surgem no topo de cada folha, ligados por uma mancha que Jorge Queiroz incorporou, surgem uma série de desenhos que se adensam e se vão transfigurando. A metamorfose em ação nestas peças, onde as formas se contaminam como o polvo se enrola, repercute, entre uniões e intervalos, o ambiente em que se encontram. Desenhos humorados, transportam a frescura que permeia o livre e efervescente imaginário de Alka-Seltzer.
Na visita ao Rialto6, a duas exposições tão distintas uma da outra, torna-se possível traçar-lhes elementos comuns – ainda que isso não seja essencial para a estimulante experiência que ambas possibilitam. Através delas somos remetidos para os elementos fundamentais do filme, o tempo e a luz, centrais à criação das obras apresentadas. Simultaneamente, é pela sensação distendida do tempo e pela ação da luz que nos envolve e intersecta que se estabelecem as tão particulares vivências de Sopro e Alka-Seltzer, assentes no cruzamento do espaço real, percorrido e habitado, com o universo invisível do pensamento, da memória e da imaginação.
Sopro, de André Cepeda, com curadoria de Joerg Baderc e Alka-Seltzer, de Jorge Queiroz, estão patentes no Rialto6 até dia 14 de abril de 2023.
[1] Walter Benjamin, The Arcades Project, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 1999, p. 252.
[2] Joerg Bader, “André Cepeda abre o diafragma” in André Cepeda, Sopro, Lisboa: Rialto6 jb books & projects, 2023, p.17. Edição publicada no âmbito da exposição.