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Dois dias de Purga: um ensaio de liberdade, um Estudo do Meio

Lógos e poíesis, rigor e criação, cálculo e desvio, pesquisa e invenção: é na zona intermédia entre estes pólos que o ensaio encontra as condições ótimas para a sua sobrevivência. Neste meio do caminho, num ponto de inflexão intranquilo, a interdisciplinaridade da forma ensaística torna-se, também – e sobretudo –, indisciplina: uma revolta alegre dos conceitos, das formas, dos sistemas, das ordens. O ensaio penetra nos detalhes do transitório e do fragmentário, expiando-se da obrigação de uma pretensa totalidade na medida em que afirma a sua constelação de ambiguidades e preocupações. Indiferente à acusação de ecletismo ou de carência de verdade, o ensaio quer nos desafiar a livrarmo-nos das amarras invisíveis do método: do método de se fazer e pensar a ciência, a filosofia, a literatura, o cinema e, porque não, as artes visuais.

É esta a teoria e o mantra do ensaio que reverberaram pelas altas paredes das Carpintarias de São Lázaro, em Lisboa, nos dias 3 e 4 de março. Durante um fim de semana, fez-se em modo relâmpago a quinta Purga do projeto de mesmo nome – concebido e gerido por Isabel Cordovil e Rudi Brito –, uma mostra intitulada Estudo do Meio. Do meio: campo da arte; do meio: entre (e contra) o início e o fim; do meio: no cerne da criação. Nesta brecha espácio-temporal, forjada pela confluência de 24 artistas e regada à cerveja e descontração, a proposta – bem conseguida – era de uma programação liberta, experimental, coletiva no seu sentido mais essencialmente contra-essencialista.

Como num ensaio, este acontecimento – que, como nos adverte o comunicado oficial do centro cultural, não foi “uma coletiva de artistas visuais, nem um festival de performance, ou ainda uma série de concertos” – não aceita que o seu escopo seja limitado de antemão. Em vez de almejar uma validação científica ou a criação de algo artisticamente inédito, o valor e a bravura de uma curadoria ensaística é o de recuperar a capacidade do espanto: “[…] seus esforços ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram”, diz-nos Adorno, ao defender a forma do ensaio enquanto expressão de um modelo reflexivo singular, no qual “[f]elicidade e jogo […] são essenciais” [1].

Nesse jogo – do qual não deciframos ou partilhamos as regras –, as subjetividades em causa não aparecem de modo imediato, mas, sim, através do esforço de trazer à tona as configurações concretas dos objetos sobre os quais elas se debruçam. Duas tardes e duas noites foi o tempo de morar na inquietação deste desejo – esta, sim, a única obrigação do ensaio (tenho o ímpeto de prolongar a frase com travessões que incluem “também a das artes”, mas apanho-me na minha própria ingenuidade). A passear despropositadamente por todos os pisos das Carpintarias, várias vezes cheguei à porta e fiz da saída novamente uma entrada, ziguezagueando, rondando, sentando, bebericando, rindo, mais uma vez a completar o itinerário por entre as obras. E só mais outra vez. Mais uma cerveja? Agora sim, vou embora. Oh! Já está na hora da próxima performance começar? Nesta perseguição da vontade e da liberdade em ritmo intermitente e inconstante, Estudo do Meio terminou sem ter chegado ao fim, sem esgotar a sua procura (mais ou menos) confidencial.

Mas se a ausência de uma linha de chegada é condição fundamental de uma prática ensaística que leva a sério a sua ludicidade, nem por isso faltam boas, importantes descobertas. Destaco, por exemplo, o hipnotizante filme de João Bragança Gil, Anticline (2020), lado a lado com One Last Longing (2020), de Henrique Pavão, que nos iscam pela beleza e pelo drama das imagens, até que, de repente, já é tarde – estamos mergulhados, afogados numa ecologia de ferimentos e dores. Também deixa rastos a fotografia de Rudi Brito, cuja presença e contraste se fazem sentir logo à primeira vista, convidando-nos a tatear com os olhos os grãos, texturas e movimentos de Container (2020). Se estes ensaios visuais nos suscitam o impulso de tocar, Uma escultura dá sempre vontade de comer (2023): das orelhas por entre folhas – de facto apetitosas – de Diogo Bolota, às vibrantes, sinuosas figuras em Phantom (2023), da talentosíssima Ema Gaspar, sentimos o gosto de uma fantasia mirabolante que nos contamina e que se torna, ali, um pouco mais real. Como já antecipava Lukács, “[…] assim como Saul, que saiu em busca do asno de seu pai e encontrou um reino, o ensaísta capaz de buscar a verdade chegará, ao final de seu caminho, a algo que não buscava: a vida” [2].

Gostava que este breve artigo tivesse descumprido as minhas expectativas e esboços iniciais e tomado, também, os contornos mais rasgativos de um ensaio. Sinto que teria sido, assim, uma tentativa literária mais honesta para com os meus temas de análise: Estudo do Meio e, em última instância, o meu próprio desejo. Contudo, regozijo-me na constatação de que o dissídio interno da força ensaística só pode resultar numa inevitável falta de conclusão última. Permaneço a meio do caminho – o único lugar que há, de facto, para ocupar.

 

 

 

[1] Adorno, Theodor. (2003). “O ensaio como forma” in Notas sobre Literatura I. São Paulo: Editora 34, pp. 16-17.

[2] Lukács, György. (2014). “Sobre a essência e a forma do ensaio: carta a Leo Popper” in Serrote. São Paulo: Instituto Moreira Sales, n. 18, p. 44.

Laila Algaves Nuñez (Rio de Janeiro, 1997) é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para a imaginação e o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH), colabora profissionalmente com iniciativas e instituições nacionais e internacionais, como a BoCA - Biennial of Contemporary Arts, o Futurama - Ecossistema Cultural e Artístico do Baixo Alentejo e, enquanto assistente de produção e criação de Rita Natálio, a Terra Batida.

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