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Entrevista a Nuno Ramos no contexto da exposição Opening na Galeria Francisco Fino

“Devido à escassa uniformidade do plinto

da praça florentina onde por séculos reinou,

começam a aparecer fissuras

nas pernas e nos tornozelos de David”[1]

Achei curiosa a ideia de monumento porque por um lado, como diz quando se refere a Musil, no texto que escreveu para a exposição, parece que o monumento é uma forma de atuar na memória, seja para a lembrança ou para o esquecimento. Hoje assiste-se a intervenções politicamente comprometidas por cima dos monumentos, rasurando-os, por exemplo. Volta-nos a fazer pensar no monumento.

Os monumentos tradicionais voltaram a fazer sentido, que é uma coisa estranhíssima. Você tem um enorme movimento de contra-monumento, por exemplo o do Vietname, em Washington. A Alemanha tem contra-monumentos, tem um que vai entrando na terra, é um monumento de chumbo em que as pessoas escreviam coisas e que se afunda dentro da terra. Tem a fonte judaica, em que você vê só uma fresta e a água caindo para dentro. Tudo isso são exercícios de contra monumentalidade, parecia que esses símbolos figurativos da memória, com os seus generais e as suas musas, tinham sido esgotados. No pós-guerra isso ficou muito claro. Parece que o nosso tempo, com essa mania de liberalidade encarnou novamente: o general racista que está lá, voltou a estar lá, e isso é estranhíssimo. E aí as pessoas derrubam e jogam no rio. Então parece-me haver um desejo de simbolização que não se realiza porque você tira aquele e põe outro.

Penso que o que se passa é um desejo de revisão, considerando tudo o que se está a passar hoje em dia.

Mas curiosamente através de uma linguagem que a arte teria considerado um pouco superada. A atribuição de significado através de uma figura. Então eu tenho a impressão que a gente está nessa brecha, que é bem significativa. Há uma necessidade de atribuição de significado e símbolos, alguma coisa que a arte não está a conseguir pegar. Não é possível que a gente volte a ter senhores sentados. Mas é curioso que esse ensaio do Musil, “se você quiser esquecer alguém faça um monumento para ele” – não.  Aquilo que parecia ser óbvio ao Musil nos anos 30, passou a não ser óbvio. As pessoas não estão esquecendo o que está ali. Elas perguntam novamente “quem está ali”. Os monumentos estão vivos, num sentido estranho. E parece que todo o esforço da arte propor uma nova monumentalidade ficou um pouco de lado – os monumentos antigos ganharam vida. É estranho isso para mim.

Pensando também na ideia de abertura, e de cerimónia, pensei nas noções de centro e periferia. Porque aquele manto que cobre qualquer coisa, é bastante político, é um velar de qualquer coisa. Lembrei-me também de uma relação que fez com o City of Lights, aquele homem que dormia na estátua. Pensando na ideia de inauguração, e nessa cena, leva-me a penar que existem pessoas que não são feitas para aquilo.

O que é bonito nessa cena, é que a estátua está viva para ele. Só para ele. Porque ele bate a bunda, ele pede desculpas, ele não consegue se livrar de um sistema de relações que está posto para ele, pelas figuras. A figuras estão vivas. E para aqueles que estão inaugurando, estão mortas. Só querem que ele saia de lá, alguém faz uma bela fala e pronto. Mas o que é interessante nele é que ele é ela figura para quem os códigos sociais são exageradamente presentes. Ele é educado demais. Ate dentro da máquina, ele continua absurdamente social no Tempos Modernos. A cena da estátua, eu acho especialmente forte porque você vê que diante da estátua, se chama “paz e prosperidade”. Aquele monumento é uma porcaria, mas ele está inteiramente ligado, como se aquilo estivesse realmente vivo. No caso da oposição, o ponto é: a coisa abre e fecha. Então eu acho que tem o desvelar que você falou, mas tem o velar também, que é o que faz com que o ritual não saia da frente. Normalmente um ritual é uma transição que desaparece.

Pensando na ideia de ritual, e da abertura, ou inauguração, penso que o que fizeste na exposição foi aliar, em certas peças, nomeadamente na peça do David e na do prato de sopa, sentido de humor e coisa séria. Vais desvelar algo, que podia ser sagrado, mas que está entrosado com algo completamente surreal e cómico.

O David tem uma coisa, não sei ele consegue. É como se ele tivesse falando do próprio cansaço das obras de arte, como se elas estivessem exaustas – do tipo, “deu pra mim”; “cansei”; “tanto século”“; o que é que esta gente quer de mim, que é que eu causo neles, eu quero ficar em paz”; “tou exausto do meu tamanho e do meu peso, isso é grande demais”.

Eu fiz uma vez uma instalação num museu lá no Rio de Janeiro, que tem uns Tintorettos, uns quadros assim clássicos, e a coisa era a gente por um espelho na frente dos retratos, um espelho voltado para eles. Como se eles pudessem se olhar. O público só via as costas de um espelho. Então essa espécie de reflexividade da obra, como se elas pudessem penar a si mesmas, acho que estava na hora disso. Não aguento mais pessoas falando nomes de obras, falando coisas certíssimas, coisas incríveis, mas assim de um modo muito direto, muito óbvio, muito sem a resistência das obras. Então eu acho que o David tem essa espécie de ironia, porque eu acho que as obras precisam recuperar um pouco de poder diante da discursividade infindável da nossa época.

Cansei.

Isso.

E a sopa?

A sopa eu imaginei como um elemento de caridade. um prato de sopa, uma espécie de unidade mínima de sobrevivência que alguém receberia e diria “obrigado obrigado obrigado obrigado obrigado obrigado”. Antes de pensar na sopa, eu tinha muita vontade de fazer esse texto, até pensei como filme. Não sei se vou chegar a fazer, mas é isso, fazer uma colagem de obrigados que não levam a nada. Tinha uma ideia até de uma peça de teatro. Se a gente fizesse a peça e os atores entrassem para agradecer e não parassem de agradecer e a peça fosse essa segunda parte e não a outra. Mas eu pensei o prato de sopa como uma unidade de humildade. O gelo, eu penei numa coisa que estivesse morrendo diante de quem estivesse lá olhando.

É uma fusão de vários géneros, vários media. Mesmo na tua pintura há uma necessidade de extravasamento da matéria, colocas nela muito peso, muitas camadas, existe ali muita coisa a acontecer.

Eu tenho amigos que são pintores, ou que trabalham com escultura, que eu acho que têm resultados ótimos. Agora para mim, Nuno, não funciona, embora eu ache que há grandes artistas que cabem em géneros. Eu gosto de um conto do Kafka, O artista da fome, que é esquecido. Ele bateu todos os records de jejum já que ele foi esquecido e ficou um tempão sem comer nada. E perguntam para ele “porque é que você jejua, porque é que você não come”,  e ele responde “porque nunca encontrei o alimento que me satisfizesse. Se eu tivesse encontrado, eu comeria”. Apesar de eu ser muito voraz e produzir muito eu me identifico com essas respostas.

É a sua maneira de viver, a sua maneira de estar no mundo, será?

É. Mas eu sinto o chamado do género. Eu quando pinto eu quero pintar. Quando eu escrevo eu quero escrever. O chamado de cada género é muito diferente, você tem de ouvir ele inteiro.

Acho que é bonito ir ouvindo. Há qualquer coisa nisso que é inconformista.

É verdade. Eu acho que tem ela coisa que é o enigma do meu trabalho. Nos quadros há uma coisa meio feliz, noutros trabalhos uma coisa muito lutuosa. Eu sempre conto a história de quando eu fiz uma retrospetiva, há 20 anos, e veio um curador francês, acho de Bordéus, e passamos a tarde juntos. E aí na hora de ir embora, ele me perguntou assim “who is the other artist?”.

E eu “como?”. Ele achava que eram dois artistas. E para mim isso sempre foi uma coisa ambivalente, saber se é bom e é ruim. Na terra do Fernando Pessoa fica fácil. Agora, eu nunca organizei isso como uma espécie de heteronomia ou algo desse jeito. Eu sempre achei que tinha um mêle que era comum em algum lugar, onde discurso vira matéria, onde matéria vira discurso e tudo se embaralha. Tem esse ente comum, às vezes as partes ficam mais nítidas, depois voltam.

Opening de Nuno Ramos está patente na Galeria Francisco Fino até 11 de março.

 

[1] Andreia C. Faria, Vertical, em Alegria para o Fim do Mundo, Porto Editora: Porto, 2019, p. 76

Rita Anuar (Vila Franca de Xira, 1994), é investigadora interdisciplinar, licenciada em Ciências da Comunicação, Pós-graduada em Filosofia (Estética) e mestre em História da Arte Contemporânea, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Integra o grupo de investigação em Literatura, Filosofia e Artes (FCSH/IELT), desde 2020. Interessam-lhe os cruzamentos entre artes visuais, filosofia e literatura, a indisciplina e o vento. À parte da sua atividade como investigadora, escreve poesia.

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