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O corpo é a sua própria ferida

Dois pólos que sustentam o discurso, dois espaços expositivos e um homem só que os conecta. Interligados, o CAPC Sereia e o CAPC Sede fundem o íntimo e a intenção de Gustavo Sumpta, um percurso percorrido por ideias de tensão, fragilidade e memória, mas cuja análise é um para sempre incapaz mecanismo de cingir o homem e a sua obra. Incauta leitura quando feita em sentido direto, difícil que é de conter numa ou noutra catalogação. De todas as vezes nos escaparia. De todas as vezes seríamos escassos. Prática que é eterna, afoita à falta de confinamento e à normatividade, seja à disciplina, ao suporte ou à predefinição.

No espaço Sereia, onde se concentram a maioria das obras, convoca-se a guerra numa retórica que cobre o seu método, hierarquia e rigidez, em contraposição à vulnerabilidade do corpo e à sua ferida. No espaço Sede, uma obra singular espelha memória, mas também a sua extinção. No primeiro caso fica-nos a sensação de impermanência, de que o passado se chega ao presente. No segundo, pressente-se continuidade. Em ambos os momentos, convoca-se a morte, seja pela fisicalidade auferida pelo bélico; seja pela sensação de perda, espécie de supressão mental do outro e nós mesmos. O trabalho é escultórico, ainda que a performatividade do artista se descubra. Constantemente à procura de sentido, ou através do seu questionamento, a obra de Gustavo Sumpta sugere um estudo em permanente processo de execução, desenvolvido à medida da sua constituição. E uma faceta de ator que surge inevitavelmente.

Na Sereia, entramos na primeira sala, onde nos deparamos com Sete Magníficos, esculturas em bronze que se perfilam, afixadas na parede. Tratam-se de sete baionetas, armas tradicionalmente reconhecidas na história pelos motivos mais sangrentos, usadas sobretudo até à Primeira Guerra Mundial. Ainda que muitos referenciais daqui se possam aferir, a começar imediatamente seu nome, impossível de não avivar o western homónimo de John Sturges nos anos 60 (e talvez aquele que lhe deu mote, o épico de Akira Kurosawa “Seven Samurai”), nunca permaneceremos indiferentes à pronta e bélica alusão, referências das quais brotam, no seu conjunto, instintos de bravura e obstinação, ecos da virilidade máscula dos seus senhores, características hipertrofiadas na guerra e por ela, quando se detém poder sobre os outros por uso da arma e do seu fogo. Às tradicionais lâminas de aço servem-lhe aqui, todavia, a representação em bronze, ou não fosse este o papel da escultura, quanto mais da arte, num processo inelutável que é base da definição da segunda – render a coisa real em potência, numa outra, cuja ambição é fazer-lhe as vezes, figurando-a por concentração do seu significado e intento. Os dons do herói do western estão todos presentes na escultura: o sentido pragmático, o estoicismo e, até mesmo, a aceitação da morte.

Esta sala, tomaremos consciência mais tarde, ressoa na última onde uma nova baioneta emerge em ferro, a qual vimos a saber ter ganhado corpo a partir do modelo britânico usado pelo exército de Wellington, nome-causa motriz da queda de Napoleão. Ou como o nome o diz “Cópia do Original”. Neste espaço residem lado a lado, ou – talvez o possamos propor – aponta-nos a baioneta para o outro elemento, uma mesa de autópsia do século XIX centrada na sala, a baixa luz. O ambiente é silencioso e a metáfora essa bastante literal, para nos lembrar e homenagear todos os que pela lança foram esventrados na guerra, e todos os, que sem lá porem o pé, esventrados foram em nome da ciência e das novas investigações. Amamos a todos por igual, ainda que sem lhes carimbar memória ou identidade. A etimologia grega da palavra autópsia reforça o ato: composta do autós, “si mesmo” e do ópsis, “visão”; somos instigados a ver por nós próprios. Acercamo-nos da mesa e ressonâncias entoam de The Anatomy Lesson of Dr Nicolaes Tulp, de Rembrandt, uma das obras mais famosas e revolucionárias do seu autor. Aquele contraste entre a vida e a morte na pintura, revelado no agora entre a mesa na qual se imagina o corpo, ou os múltiplos corpos falecidos, compondo nós o papel do interveniente vivo, em movimento, que com a peça interage.

A meio termo, entre salas um hiato para coexistência de duas esculturas que dialogam com a mesma problemática. A primeira, denominada En Passant–Captura na Passagem, estrutura em bronze, de cariz igualmente militar (veja-se o movimento especial de captura que sugere o termo na gíria do xadrez), e que permanece de pé, numa exaltação de autoridade e observação. Pela simplicidade da sua posição, assemelha-se à bandeira erguida, aos marcos fronteiriços de delimitação territorial, à última lança – do xeque-mate ou da piedade – que verticalmente desce para perfurar o corpo inimigo. Mas também, ao sujeito vigilante que conquista e que domina. A segunda peça, Zugzwang – Movimento Obrigatório, mais uma vez emprestando o título a um movimento de xadrez, sugere o que o termo alemão levanta e que os entendedores deste exercício já sabem – nenhum movimento irá ajudar aquele que tem a imposição de jogar, todas as possíveis ações consequentes só poderão piorar a sua situação. A concretização da forca assim nua e crua, através de uma espécie de coroa de espinhos que se suspende do teto e insinua entrelaçada à altura de um hipotético mártir humano, é a única memória que nunca esqueceremos, a da morte. A que nos assombra a impermanente existência. Ninguém pode evitar tal sentença. E, se à escultura é impotente exigir o real, cingimo-nos ao seu poder de representação e aos espíritos que acorda. No espaço as peças são assim, citando o próprio CAPC “corpos exumados, numa tentativa de se tirarem do esquecimento, (…) celebrando as qualidades de alguém que habitou um corpo”. Alguém de quem resta a lembrança imaginada, e atestada pela história; tanto o que morreu como aquele que fez morrer, em cenário de guerras e conquistas, no campo terrestre ou investigativo.

Na Sede, a apoteose concentra-se numa só obra, mas estende-se nos vários reflexos de uma performance já ida, na qual metros de fita VHS contendo outros tempos, rostos e locais, se perderam para sempre. São metros que se prolongam visíveis, mas nem por isso decifráveis. A escultura reforça esse momento, o de uma vida útil tornada no seu oposto e a amargura de uma vivência ou resgate inexequíveis. É este o confronto com a fragilidade da memória. Aquela que caminha par a par com o esquecimento. O que é viver a rememorar senão o expectar de um eterno encontro? Tentativa fortuita de preservar na lembrança da mente e dos sentidos para mais tarde recuperar. Expectar não assegura. Vim para enterrar César, compõe-se de um conjunto de esculturas que ambicionam trazer à luz quem habitou os seus corpos; ainda que depressa nos apercebamos, que deles nunca virá quem possamos exumar. Resta a memória volátil do que representam. Pois, na dialética entre a memória e a amnésia, a minúcia da arte, mais ainda na escultura, está na sua metáfora, como assim o colocou Delfim Sardo na folha de sala, a qual nos devolve apenas a morte ou, na melhor das hipóteses, a persistência do que achamos saber, em suspenso e inconclusivo. Com sorte transforma-nos.

Nós que sempre tentamos suprimir a guerra, a chaga coletiva e o trauma que dela fica. Nós que fugimos da ideia da morte a sete pés. Que esperamos que o passado a oculte e deixe inerte nos livros; e que em vida haja alguém que com ela lide, de forma rápida, peremptória, pragmática. Ainda que a tentativa de fugir da dor, seja o que a cria em primeiro lugar, e até fortalece. Nada na exposição tem um nome definido. Cada peça é carcaça de um corpo ausente, como Delfim Sardo o classificou. O confronto com estas peças aviva-nos o medo adormecido. É certo que o Homem emana um eterno desejo de permanência. Porém, neste estado absoluto de tensão entre objetos, mergulhamos numa exploração mental a vários tempos, numa análise psicológica, profunda, pessoal e instintiva do espaço, que, pela força do seu simbolismo histórico, nos converte nos seus designados. Somos alegoria da vítima. Fundindo assim os dois fios pendentes – o do storytelling e o da preservação da mensagem – prolongando a tensão entre efemeridade e permanência. E, desta forma, redefinindo a narrativa, permitindo que mesmo sem identidade ou memória singular, do artefacto ecoe quem na memória coletiva poderá caber, ou na nossa carne se possa fazer sentir. Todos os que passaram por estas histórias. Sem nenhum nos faltar.

Enterremos César, e que seja este o elogio aqui feito; o único que a nós cabe.

Vim para enterrar César de Gustavo Sumpta no CAPC – Círculo de Artes Plásticas de Coimbra até 22 de abril.

Mestre em Estudos Curatoriais pela Universidade de Coimbra, e com formação em Fotografia pelo Instituto Português de Fotografia do Porto, e em Planeamento e Gestão Cultural, Mafalda desenvolve o seu trabalho nas áreas de produção, comunicação e ativação, no âmbito dos Festivais de Fotografia e Artes Visuais - Encontros da Imagem, em Braga (Portugal) e Fotofestiwal, em Lodz (Polónia). Colaborou ainda com o Porto/Post/Doc: Film & Media Festival e o Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema. Em 2020 foi uma das responsáveis pelo projeto curatorial da exposição “AEIOU: Os Espacialistas em Pro(ex)cesso”, desenvolvido no Colégio das Artes, da Universidade de Coimbra. Enquanto fotógrafa, esteve envolvida em projetos laboratoriais de fotografia analógica e programas educativos para o Silverlab (Porto) e a Passos Audiovisuais Associação Cultural (Braga), ao mesmo tempo que se dedica à fotografia num formato profissional ou de, forma espontânea, a projetos pessoais.

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