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Dar formas ao lugar

Em 2011, a editora Dafne fez sair um volume de estudos de Vítor Silva sobre o pintor oitocentista Henrique Pousão. O livro – um muito bonito objeto – inclui, além dos ensaios propriamente ditos, encaixado no interior da contracapa, um desdobrável “Atlas de imagens” que, quando aberto, compõe uma cartografia ilustrativa da obra e da vida (“Infância, Experiência e História do Desenho”) do pintor. Foi este Atlas – e o eco warburguiano que nele ressoa – que me saltou à ideia quando, ao cimo das escadas de pedra, no primeiro piso do antigo Palácio da Inquisição de Évora, agora Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, abri a folha de sala e, antes mesmo de olhar para os quadros, vi as miniaturas coloridas que naquela impressão em papel os representavam. A curadoria da exposição é de Sérgio Mah (que assina o texto do catálogo) e do pintor, Jorge Martins. Arrisco pensar que a conceção desta espécie de mini-Atlas, assim oferecido a quem visita, integra a ideia que regeu a organização da exposição, a ideia e a sua visibilização num espaço. Além da expressão “topomorphias”, que dá nome à mostra, mais de metade das cinquenta e sete peças ali exibidas é identificada por um título; grande parte destes títulos, por sua vez, tem por referente lugares espaciais, mais ou menos identificáveis: “Jardim na China” pode ser menos vago do que “Horizontes”, mas a nomeação dos lugares e a sua relação com o imaginário percebe-se em designações como “Pangeia”, “Jardim Probabilístico”, “Paisagem Esquisita”, “Deriva dos Continentes” ou “Ilhas Flutuantes”. O mini-Atlas ajuda a gerar no visitante a ideia de uma legenda cartográfica.

Topomorphias terá tido como móbil principal a exibição da mais recente pintura de Jorge Martins (n. 1940), cuja atividade artística teve início em 1957, ano em que começou a sua formação em Arquitetura e Pintura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto. Há, aliás, uma decisão clara de se situar a produção agora exposta em Évora dentro do século XXI – mostra-se um único quadro do ano 2000 (significativamente intitulado Work in Progress, o que sugere que a baliza temporal é também continuidade); metade das peças data de 2020; de 2021 expõem-se cinco; catorze são de 2018 e 2019 e doze foram executadas entre 2010 e 2015. É um mapa temporal, cujas fronteiras mais densas desenham o território do confinamento pandémico – mas que exibe, precisamente, regiões contíguas, áreas de paisagem semelhante. Num certo sentido, o que Jorge Martins propõe é um périplo que ilustre o resultado da sua produção em condições excecionais (de uma determinada segregação material do mundo, mas obviamente num room of his own), mas com o pressuposto de que a insularidade causada pelo isolamento não é total. A sua obra dos últimos dois ou três anos está agregada à das décadas anteriores como qualquer ilha na Terra se liga a toda a crosta, ainda que submarina. É isso Pangeia (2019), que se mostra ao lado de Gondwana (2019) – os nomes dos supercontinentes que originaram a configuração terrestre sobre a qual hoje se habita. Ambos os quadros, a acrílico, datam do período prévio ao da pandemia: sublinham (suspeitam?[1]) a inseparabilidade dos lugares do ser humano, a profunda ligação que agrega todos os habitats – logo, o conjunto da existência. Topomorphias é um balanço de vida e é um olhar para a Vida, de mapa na mão.

Para que servem os mapas? Se hoje os dispensamos, substituídos como instrumentos de navegação no espaço por aplicações eletrónicas, existe um reino onde ainda sugerem e permitem seguir um trilho, um desenho para o movimento, uma imagem que tranquilize quem navega o que, à sua frente, tem por desconhecido. Porém, esta folha de sala (cuja utilidade literal, na miniaturização das peças e na sua identificação rigorosa, é óbvia, a de registo e arquivo) parece-se com uma caderneta de bandeiras de todos os países do mundo. A própria exposição lhe nega o valor de ícone com correspondências diretas nos quadros: na sala de entrada, se desviar o olhar para a sua direita, o visitante vê o único quadro que em toda a coleção se dispõe contrariando a horizontalidade de quadrados e retângulos: um óleo sobre tela de 2020, sem título; na folha de sala, a miniatura não se distingue, na disposição espacial, de nenhuma outra. Esta tela branca (120×120) assim destacada de todos outros quadros está preenchida por uma dezena de traços coloridos, mais densamente enlaçados no vértice inferior do que em cima, e funciona como o buraco de uma fechadura por onde poderá entrever os restantes. Desde logo, olhando em frente quem ainda estiver no umbral da entrada, duas outras telas a óleo. A ladear uma das portas envidraçadas que dão para o Largo, tal como naquela primeira peça, em ambas o fundo branco faz destacar uma série de linhas curvas de cores vivas, florescentes, que praticamente não se tocam; no quadro da esquerda, são nada mais que três; no da direita, multiplicam-se num aparente emaranhado, mas o branco do fundo mantém a predominância. É um “white noise” que aqueles traços ferissem, como ruído. Como ruído ou como música – de facto, o título do primeiro é Riccercare [sic] (2015), o do segundo Pizzicato (2015), termos que, à semelhança de outros quadros da mesma altura, fazem uso de traços coloridos sobre fundo branco e remetem, através dos títulos, para o âmbito da música. O artista não deu título à mais recente, mas a luminosidade e a cor inscrevem-na naquele repertório musical que explicitamente quis incluir nesta meditação sobre o lugar. Na verbal perspicácia de Maria Filomena Molder, “[a] arte de Jorge Martins é uma forma de conhecimento, próxima da astronomia, da física das partículas, das teorias da luz e não menos profundamente da música” (p. 80). Não é a música a arte do tempo, e não é através dele, e da música através dele, que pode consubstanciar-se o espaço? Em Jorge Martins, a forma da música – cores suspensas em arcos, em pontos beliscados ou traçados sobre o branco de uma tela –, é uma das formas do lugar, uma das topomorphias. É uma das formas que lhe sublinham a continuidade.

Num dos seus cadernos de notas, Jorge Martins define a Arte como “uma sensação/perceção que se transforma em ideia que se transforma em formas que geram sensações/emoções, etc. etc.” (p. 482). É deste encadeamento infinito entre ideias, formas, ideias, formas, …, que se faz “topomorphias”: de um recordar permanente do carácter inconsútil dos blocos de terra que fazem os continentes, do Tempo unificado pela enérgica prática da arte, de uma harmonia mundi que nenhuma ameaça viral conseguirá destruir.

Topomorphias de Jorge Martins, está patente no Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, Évora até 9 de abril.

 

 

 

 

Referências:

Jorge Martins (2020). Cadernos/Cuadernos, MARCO – Museu de Arte Contemporânea de Vigo / Documenta.

João Miguel Fernandes Jorge (1990). “Jorge Martins” [sobre a exposição Desenhos 1957-1987, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, junho de 1988], in O Que Resta da Manhã, Quetzal, pp. 129-131.

Maria Filomena Molder (1999). “Per Aspera ad Astra” [sobre a exposição Desenhos 1957-1987, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, junho de 1988], in Matérias Sensíveis, Relógio d’Água, 1999, pp. 73-80.

Vítor Silva (2011). Henrique Pousão, Dafne Editora.

[1] Referindo-se aos desenhos de Jorge Martins, João Miguel Fernandes Jorge aponta “uma certa necessidade poética carregada de pressentimentos” (p. 131)

Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.

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