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Ambiguidade e Contaminação: Júlio Pomar, André Romão, Jorge Queiroz e Susanne Themlitz no Atelier-Museu Júlio Pomar

Com um título pedido de empréstimo a um texto de Júlio Pomar – Em Matéria de Matérias-Primas -, a exposição patente no Atelier-Museu Júlio Pomar, com curadoria de Sara Antónia Matos, parte dos entendimentos e desentendimentos em torno das matérias-primas com as quais trabalham André Romão, Jorge Queiroz e Susanne Themlitz numa relação com a obra de Júlio Pomar.

Os artistas conversam com o trabalho de Pomar, em particular, a série intitulada Mascarados de Pirenópolis (1987-88). Neste conjunto de obras, o artista trata o tema das Festas do Divino Espírito Santo, em que os habitantes da cidade de Pirenópolis montam cavalos enfeitados usando máscaras numa alusão à morte e ao diabo. Pomar capta esta atmosfera no festival de cores que apresenta em cada uma das pinturas que compõem a série: cores que nos enfrentam como uma onça, conduzindo-nos ao delírio – e ao deleite.

Como escreve o artista “toda a obra aponta para fora, isto é, se nutre do que alheio vai buscar para poder tentar uma verdade sua”[1]. Se pensarmos no modo como a exposição foi construída, podemos aí implicar esta ideia – ir ao encontro das matérias do mundo que transportam energias para o interior da obra. Falamos de contaminação, mas também de construção ou composição, e assim, de modos distintos de fazer. As obras apresentadas na exposição dialogam entre si atendendo a esses distintos fazeres, compostos por pedaços de mundo – pedaços de tecido, madeira, bambu, papel, cores, objetos – elementos que se desdobram uns nos outros.

No caso de Júlio Pomar, e partindo da série dos Mascarados, estamos face a pinturas marcadas por uma ambiguidade, que é, afinal, o coração destes trabalhos. Tratam-se de pinturas que parecem atacar o espectador, não só pelas cenas que nelas podemos encontrar – figuras humanas montadas em cavalos que ameaçam atravessar-nos -, mas também pelo trabalho de cor no qual descobrimos uma tensão entre figura e fundo, resolvida através da diluição causadora dessa (con)fusão – as figuras perdem-se no fundo contribuindo para acelerar, ou elevar, a pulsação das cores, a artéria destes trabalhos.

Susanne Themlitz, na multiplicidade de media com que trabalha, presta continuidade ao apelo de Pomar no que se refere à feitura da obra, ao seu entrosamento com o que dela fica de fora, mas igualmente, no que respeita à cor. As obras apresentadas pela artista dialogam nitidamente com as cores dos Mascarados de Pomar, quer nas obras em que utiliza têxteis, quer nas obras em cerâmica. As cerâmicas de Themlitz são formas-delírio, uma potencial expressão tridimensional da atmosfera das pinturas de Pomar. A artista e os seus objetos, que são também matéria-prima, expandem o universo da pintura para outros lugares, sublinhando a noção de contaminação e movimento, qualquer coisa que pode ser vista não apenas nas cerâmicas, mas também nas peças em que utiliza vidro. Através dos vidros coloridos, em Entre (nous), 2009-2022, vemos a cor em ação, uma vez que a água, como matéria-prima, lhe atribui esse corpo vivo. Uma densidade colorida. De outro modo, nos detalhes de Entre (aberta),2022, em que a artista coloca acumulações de óleo sobre papel à lupa, demarca-se a intensidade da tinta. Ao nível espacial, a obra têxtil da artista é presença em toda a exposição. Num andaime em bambu Entre, 1997-2022, Susanne Themlitz tem pendurados tecidos coloridos, formas que podiam ser alguma das manchas das pinturas de Pomar. A obra, pela sua dimensão em altitude, pode ser vista em qualquer ponto da exposição, e assim, contamina todas as outras.

André Romão, com os fragmentos de corpos adormecidos e as naturezas que os rodeiam (Dicksonia antartica), confere um caráter igualmente objetual ao festival. A cabeça adormecida (Peito, 2022) que dialoga com uma máscara colecionada por Pomar da década de oitenta, é sintoma de uma afinidade com o gesto colecionador que aproxima ambos os artistas. Além da presença do fragmento, que qualifica o trabalho de Romão, também o mundo natural se instala na exposição, confirmando uma vez mais que obra e mundo permanecem em estreita relação. Ainda a respeito das cabeças – ou máscaras -, na exposição pode ser vista uma série de desenhos de André Romão, intitulados Mask, 2022. Neles, formas vegetais confundem-se com caras – olhos feitos de conchas, troncos de árvore ou folhagem – qualquer coisa que parece resgatar uma ambiguidade próxima daquela que está em causa nas pinturas de Pomar, ainda que realizada com meios muito distintos. Nos trabalhos de Romão – tinta sobre papel -, não se trata de um exercício de diluição, como sucede com os exercícios cromáticos de Pomar, mas de uma espécie de ilusão, uma ambiguidade sóbria – já no fim das festividades. Talvez.

No entanto, um outro conjunto de trabalho de Júlio Pomar, desta vez executados com esferográfica, estabelece um ponto de contacto com a série de desenhos de André Romão. Tratam-se igualmente de desenhos de paisagens vegetais, alguns da região do Brasil (Coqueiros, Brasil, 1987).

Jorge Queiroz, no piso superior, apresenta um grupo de pinturas nas quais a diluição das figuras nas manchas de cor estabelece pontos de ligação formal com a série de Pomar.

Nas pinturas apresentadas pelo artista também existe uma ambiguidade, desta vez, estilhaçada – em comparação com os trabalhos vibrantes de Pomar. Um estilhaçamento que advém da multiplicidade de cenas e planos que se diluem uns nos outros– manchas movediças que ora são figura, ora são fundo, ora corpo, ora cenário – de uma outra cena. Todas as camadas das pinturas de Queiroz partilham o mesmo ponto de partida – a tinta a fazer-se corpo, figura, passagem. Uma pintura que vive de se contaminar a si própria, de si própria. O esbatimento do representado (ou apresentado), a favor da simultaneidade, ação e intensidade, onde uma febre de cor é tornada no principal assunto da pintura – manchas mascaradas de corpo, e de situação.

Em Matéria de Matérias-Primas, está patente no Atelier-Museu Júlio Pomar até 12 de março.

[1] Citado da folha de sala da exposição

Rita Anuar (Vila Franca de Xira, 1994), é investigadora interdisciplinar, licenciada em Ciências da Comunicação, Pós-graduada em Filosofia (Estética) e mestre em História da Arte Contemporânea, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Integra o grupo de investigação em Literatura, Filosofia e Artes (FCSH/IELT), desde 2020. Interessam-lhe os cruzamentos entre artes visuais, filosofia e literatura, a indisciplina e o vento. À parte da sua atividade como investigadora, escreve poesia.

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