Pororoca de Cristina Lamas na Fundação Carmona e Costa
Pororoca é um fenómeno natural que ocorre no momento em que a corrente fluvial do rio Amazonas encontra o oceano, formando uma grande onda. O embate provocado pelo encontro entre água doce e água salgada é de uma estranheza violenta semelhante ao que sentiu Cristina Lamas em 2016, altura em que percorreu o rio Amazonas desde Manaus até Belém do Pará, no seu primeiro encontro com a região. A exposição Pororoca com curadoria de Natxo Checa, patente na Fundação Carmona e Costa, é o resultado das várias viagens da artista a este lugar.
O rio Amazonas, localizado na América do Sul, é o rio com o maior volume de água do mundo e a Amazónia possui a maior bacia hidrográfica do mundo. Com mais de sete milhões de quilómetros quadrados, é responsável por cerca de um quinto da totalidade do fluxo fluvial mundial e a água que flui pelos rios amazónicos equivale a 20% da água doce líquida do planeta Terra. “Fiquei fascinada com a dimensão, com a escala, com tanta água doce. Eu sou do mar. Fiquei encantada com toda a dinâmica dos povos ribeirinhos, com os indígenas que habitam quer as cidades quer as regiões fora das cidades”. O encanto referido por Cristina Lamas é, segundo ela, imbuído da estranheza violenta referida no início deste texto, ao ver-se confrontada com os profundos problemas ambientais daquela zona bastante abandonada e pobre do Brasil em contraste com a grandiosidade da natureza e vida que ali existe.
Perante este primeiro embate, promete regressar ao rio Amazonas, acabando por fazê-lo em 2018-2019, desta vez percorrendo-o desde Iquitos no Perú até Manaus no Brasil. Ao longo deste percurso efetuou inúmeros registos fotográficos, apontamentos ou notas visuais, como lhes chamou, e visitou muitos museus e bibliotecas, reunindo a informação que serviu de base para o seu trabalho. Registos de uma Amazónia que difere da imagem romantizada que existe dela como sendo uma região virgem onde a natureza se encontra intocada. “Existem inúmeros estudos que se referem à Amazónia como uma construção humana. Virgem nunca foi pois sempre teve habitantes, intocada muito menos pois sempre foi intensamente explorada.” Cristina Lamas percorreu a rota do narcotráfico, muitos locais onde se verificou o envenenamento das águas do rio e onde muitos ativistas (ambientalistas, etc.) foram assassinados pela sua luta em defesa daquela região. Um lugar onde o clima é o da insegurança ao mesmo tempo que existe uma vida inigualável pautada por um rico ecossistema repleto de inúmeras espécies animais e vegetais, um paradoxo.
Rita Natálio, numa conversa que teve lugar na Fundação Carmona e Costa a propósito da exposição refere-se a este contexto como sendo “marcado por uma proliferação de vida e de experiências relacionais, estéticas, humanas muito particulares ao mesmo tempo que por uma violência ecológica e social que é vivida nesse contexto. A Amazónia é o território de uma imensa socio biodiversidade. Esta socio biodiversidade é o resultado de um entrelaçamento muito complexo entre modos de vida que são ímpares no contexto amazónico e que são desenvolvidos por povos tradicionais, entre eles indígenas, que engendram formas de transformação e de crescimento do território. Este bioma florestal e humano, apesar do seu valor único, é ameaçado continuamente por forças reativas de monocultura.”
É neste contexto que surge a exposição Pororoca. “Foram estas provocações culturais, ambientais que me fizeram desenhar” refere Cristina Lamas. Desenhos, colagens, objetos e neóns que combinam elementos, imagens, fragmentos arquitetónicos, cores e tonalidades provenientes de vários lugares. Bilhetes ou panfletos recolhidos durante a sua estadia ou imagens que lhe despertaram especial interesse e que procurou registar fotograficamente, panos tingidos com ervas naturais provenientes das regiões por onde passou, ou representações dessas mesmas plantas, são alguns dos elementos que dão corpo à rica e exaustiva pesquisa que tem vindo a desenvolver.
Numa das salas da exposição sobressai o tom vermelho do urucum, um fruto cujo pigmento é utilizado por povos indígenas brasileiros em pinturas corporais. Uma série de desenhos geométricos, padrões “desconstruídos” concebidos pela artista, produzem uma espécie de ilusão de ótica ou um movimento do olhar relacionado com a forma cinética, citada por Susana de Matos Viegas numa conversa que teve lugar em Janeiro a propósito da exposição, que assume particular importância para os povos daquelas regiões.
Associados a estes desenhos existe uma série de “desenhos tridimensionais”, como Cristina Lamas lhes chamou, que compõem colares cujas “missangas” são em papel recortado pintado a tinta da china e grafite. Estes objetos remetem obviamente para as joias indígenas, mas também para as encantarias, manifestações espirituais e religiosas afro-ameríndias, e para os quilombos, comunidades criadas por populações que se formaram a partir de situações de resistência territorial, social e cultural no Brasil, no período colonial. Estas comunidades eram formadas por negros escravizados que procuravam a liberdade e se organizavam em comunidades autónomas. Hoje em dia os quilombolas, ou os moradores dos quilombos, reconhecidos desde 2007 pelo Governo Federal do Brasil como comunidade tradicional, formam comunidades com práticas diárias de produção com desenvolvimento sustentável e possuem uma cultura que se diferencia da cultura predominante local.
A música atravessa toda a exposição através de um inventário de “ritmos bailables” sintetizados no “ritmo” do néon vermelho sobre uma parede verde, já que, segundo Cristina Lamas, na Amazónia “silêncio é morte. Amazónia é vibração, é vida, de manhã ouvem-se os pássaros, durante o dia escuta-se música o tempo inteiro e à noite há o coaxar das rãs e o zumbido dos insetos.” Esse ritmo foi reforçado pela intervenção “Som” de Domenico Lancellotti que decorreu em dezembro nas galerias da exposição. Atravessando esta dança, Pororoca termina do mesmo modo que começa, com uma cuia, taça feita a partir do fruto da cuieira, objeto indígena utilizado para comer, o tradicional tacacá típico da região, ou beber água. Este objeto que alimenta, que oferece o que comer, personifica a própria artista.
Pororoca é sem dúvida uma reflexão completa e complexa acerca de um território estranho e violento, fascinante e grandioso, repleto de paradoxos e onde é possível encontrar semelhanças com o território europeu em que vivemos, a começar pela língua, o português. Curioso será que a investigação de Cristina Lamas se tenha iniciado antes da tomada de posse do ex-presidente do Brasil Jair Bolsonaro e que o seu resultado seja agora mostrado após quatro anos de um mandato nefasto para aquela região, cujas consequências se começam agora a verificar, ao mesmo tempo que o país se invade de uma onda de esperança marcada pelo novo Governo do Brasil.
Pororoca de Cristina Lamas, com curadoria de Natxo Checa, poderá ser vista na Fundação Carmona e Costa em Lisboa até ao dia 19 de fevereiro.