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Pintura sem começo, meio e fim

Em 1763, um panfleto anónimo acerca do Salon du Paris, a exposição oficial da Academia Real de Pintura e Escultura francesa, declarava que “jamais se havia arranjado as diferentes partes […] [daquela] rica coleção com mais inteligência, tanto pela beleza do seu conjunto, quanto pelo benefício particular de cada uma das obras de arte que o compõem” [1]. O mérito deste elogio era de Jean-Baptiste-Siméon Chardin, artista e académico que, naquele ano, ocupava a posição de “tapissier” – algo como “decorador” – da exibição. Responsável pela disposição estética e, sobretudo, ideológica das peças, o veterano criativo – que expôs obras próprias em 24 edições dos Salons, entre 1737 e 1779 – compreendia que o efeito final da totalidade do espaço era tão importante quanto a qualidade individual de cada trabalho.

260 anos depois, numa casa até mais antiga que os Salons ou o próprio Museu do Louvre, pouco mais de uma centena de obras cobrem as paredes da Brotéria, centro artístico no Bairro Alto onde convivem e debatem-se a fé cristã e as culturas urbanas contemporâneas. Em Pintura Sem Fim, artistas de A a (quase) Z, de proveniências, linguagens, técnicas e carreiras diversas, reúnem-se, lado a lado, numa mostra que procura destacar a intemporalidade e indispensabilidade do pictórico nas geografias das artes visuais – como quem diz: no terreno da História da Arte, todos os caminhos levam à pintura.

Ao visitante despreocupado, a justaposição das peças nas salas Aula da Esfera e Home Espuma parecerá absolutamente aleatória. Ao espectador empenhado numa análise exigente de cada obra, a intensidade dos agrupamentos de quadros – combinada ao difícil exercício de identificação dos títulos e artistas – não poderá resultar noutra coisa que não uma experiência algo vertiginosa.

Há, no entanto, um interessante jogo a ser descoberto se, como a escritora Carola Saavedra o faz para a literatura, utilizarmos as regras da permacultura para encontrar uma espécie de permacuradoria: “1. Observe e interaja; 2. Junte e armazene energia; 3. Tenha como objetivo a colheita; 4. Use a autorregulação e aceite feedback; 5. Use e valorize energias renováveis e serviços; 6. Produza pouco lixo; 7. Crie primeiro um modelo e depois os detalhes; 8. Integre em vez de separar; 9. Encontre pequenas e lentas soluções; 10. Use e valorize a diversidade; 11. Use as fronteiras e valorize as margens; 12. Aproveite as mudanças e encare-as com criatividade” [2].

Tendo alguns destes princípios uma aplicabilidade à estética nitidamente mais óbvia do que outros, interessa-nos, em particular, o número 11: que podem os breves intervalos entre as obras, tanto horizontal como verticalmente, nos dizer sobre a escolha de cada peça e deste desenho expositivo? Que histórias e diálogos se inscrevem por entre as molduras? Se cada parede representasse ali um continente ou oceano, quais divisas atravessaríamos, ou quais ilhas gostaríamos de visitar? Inspirando-nos a forjar conexões que não estão, a princípio, dadas – nem ao olhar indiferente, nem ao olhar rigoroso –, questões como estas podem nos levar a vislumbrar, por exemplo, um mesmo personagem azul a saltar de Macau (2009, Nadir Afonso) diretamente para 2045 (2022, Pedro Batista).

Podem, ainda, ajudar-nos a elucidar a ironia com que, de acordo com o texto de apresentação de Pintura Sem Fim, a mostra revisita os modos expositivos típicos do Salon de peinture et de sculpture: se, naquela época, no cume da hierarquia espacial estava o reino espiritual da Mitologia, da História e da Religião, enquanto os géneros considerados inferiores, a paisagem e a natureza morta, repousavam ao alcance dos braços, nos salões da Brotéria um retrato anónimo do século XVII quase toca o chão e a montanha prateada de Gabriela Machado, em Meus amigos (2018-21), convida-nos a ficar na ponta dos pés. A fazer fronteira, óleo sobre tela e uma pintura sem tinta, com lixívia e bordado de algodão, alinham-se – Sem título (2010), de Gonzalez Bravo, e Log on (2021), de Manuel Tainha.

Assim, mais do que enfatizar uma pretensa equivalência ou semelhança entre obras tão distintas – relembremos os pontos 8 e 10 do manual para a permacuradoria –, Pintura Sem Fim parece declarar que cada pintura é mais do que um objeto em si, maior do que cada autor ou autora, também parte de uma ecologia dinâmica e autossustentável. Em outras palavras, a exposição desafia-nos a reconhecer que, sem ontologia nem teleologia, a próxima pintura está a ser pintada desde sempre, para sempre.

Pintura Sem Fim, com o apoio da Fundação Millennium bcp, está patente na Brotéria até 15 de fevereiro de 2023.

 

 

 

 

 

[1] Whyte, Ryan. (2013). Exhibiting Enlightenment: Chardin as tapissier in Eighteenth-Century Studies, 46(4), p. 531. Tradução livre.

[2] Saavedra, Carola. (2021). O mundo desdobrável: Ensaios para depois do fim. Belo Horizonte: Relicário Edições, p. 81.

Laila Algaves Nuñez (Rio de Janeiro, 1997) é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para a imaginação e o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH), colabora profissionalmente com iniciativas e instituições nacionais e internacionais, como a BoCA - Biennial of Contemporary Arts, o Futurama - Ecossistema Cultural e Artístico do Baixo Alentejo e, enquanto assistente de produção e criação de Rita Natálio, a Terra Batida.

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