Entrevista com Lisette Van Hoogenhuyze, autora da capa do mês
Pensemos nas letras de um alfabeto e na maneira como estas modificam significados consoante as diferentes conjugações. Quantos cenários poderão existir?
Mafalda Ruão entrevista Lisette Van Hoogenhuyze, autora da capa do mês de Umbigo, examinando a sua constante mudança de trajetória, entre técnicas, meios e abordagens. Uma prática nunca acomodada, mas um processo contínuo de aprendizagem que pretende corporizar as culturas e simbolismos das gerações mais antigas. O objetivo é assinalar a intemporalidade da vida. Afinal, não será a vida um ciclo infinito de histórias revividas, mesmo quando as aparências nos iludem? Através das suas pinturas, tapeçarias, coloridas paisagens, a verdade emerge quanto mais fundo adentramos.
Enquanto observadores, tendemos para ir para além da posição do autor, invocando o alheio à sua origem. Associamos fragmentos de nós próprios em relação à obra e criamos algo desconhecido no espaço, assente na capacidade de a arte permitir uma indefinida pluralidade de significados. Mas, como diria Lisette, a essência de uma obra nunca será atingida sem estas livres interpretações.
Mafalda Ruão – De que forma(s) a vinda para Lisboa moldou a sua obra?
Lisette Van Hoogenhuyze – Trabalho de forma muito intuitiva. A alteração das estações e a mudança das cores citadinas têm uma influência fundamental na minha prática. Em Lisboa, há uma enorme diferença no que diz respeito à luz natural e à exposição solar em comparação com a minha terra natal, os Países Baixos. Ter diariamente o pôr-do-sol rosa e os raios de luz nos edifícios pastel ou nos azulejos é uma permanente fonte de inspiração. Fora isso, em Portugal permito-me passar mais tempo fora do estúdio e desfrutar mais da natureza. Esta ligação com o exterior é uma excelente fonte de momentos que gosto e quero guardar no meu álbum de fotografias mentais. A minha relação com os elementos mudou e o meu trabalho tornou-se cada vez mais narrativo. Nos últimos tempos também passei a incorporar elementos marinhos como conchas, pérolas e vida selvagem marinha. Sinto que tenho agora muito mais narrativas nas minhas peças.
MR – Diria que existe uma narrativa que acompanha todo o seu trabalho?
LVH – Cada vez mais. Os meus últimos projetos abordam sobretudo o storytelling. Mitos, contos de fadas, sonhos… E também a história e os lampejos das notícias contemporâneas. O meu trabalho diz que estamos a viver num ciclo onde todas as histórias outrora contadas são revividas e parece que não estamos a prestar atenção aos erros recorrentes. Para mim a intemporalidade é crucial e não preciso necessariamente de indicar um momento específico no tempo através das minhas peças.
MR – Não trabalha com um momento ou espaço definido no tempo. Enquanto viajante habitual, acha que esse movimento lhe permite operar em diferentes culturas/realidades?
LVH – Trabalhar com culturas e realidades diferentes sempre teve uma forte influência na minha atividade. E talvez até faça parte da contrapartida. Mas sempre tive a minha base nos Países Baixos para onde poderia voltar. Agora que este ponto foi deslocado para Lisboa, sinto que me posso distanciar mais, não só física, mas também mentalmente, dos valores, regras e limitações do meio académico e artístico neerlandês e norte-europeu. A influência de um leque de culturas e realidades chega-me agora ainda com mais naturalidade, pois todos os dias passo tempo e converso com pessoas de diversas origens.
MR – Como disse uma vez, as paisagens coloridas abrem portas ao escapismo. Que potencial identifica na sua prática e o que tenta alcançar através dela?
LVH – Paradoxalmente, acredito que as minhas ‘paisagens coloridas’ permitem que sejamos atraídos para algo que talvez não queiramos ver. Por exemplo, em alguns quadros, podemos vislumbrar um belo pôr-do-sol rosa e laranja. Mas, quando nos aproximamos e usamos os nossos sentidos, apercebemo-nos pormenorizadamente de que a cor no céu não vem de um pôr-do-sol, mas de um incêndio florestal. Talvez gostássemos que a nossa cabeça nos tivesse deixado com a simplicidade do bonito pôr-do-sol, mas somos confrontados com a realidade. Acho que é uma espécie de metáfora para o que procuro no meu trabalho. Gosto de provocar atração com uma estética aparentemente apelativa. Mas, quanto mais fundo cavamos e mais camadas descascarmos, mais confrontados somos com algo que pode não ser tão agradável como inicialmente pensávamos.
MR – E fá-la no fluir entre o abstrato e o figurativo.
LVH – Não gosto de me comprometer com uma só coisa. Também mudo constantemente de meios e técnicas. Encaro todas as possibilidades como letras de um alfabeto, que juntas podem formar palavras com sentidos diferentes. Algumas obras precisam de uma abordagem mais abstrata, outras gozam de uma expressão figurativa onde o significado se torna mais claro ou, por vezes, mais misterioso. Há imensas dualidades nas histórias que eu conto. Nunca digo “isto está certo ou errado” no meu trabalho. A questão é mais multifacetada, complexa e individual do que a expressão de uma só mensagem. Os princípios do observador são também um elemento importante que complementa as minhas peças, pois a sua interpretação contribui para as ativar.
MR – A figura feminina é um elemento figurativo comum nas suas pinturas e tapeçaria. Encara a sua arte como uma ferramenta para comunicar e elaborar mensagens sociais e políticas?
LVH – Enquanto mulher, é inevitável que elas sejam protagonistas no meu trabalho. A figura feminina é até habitual na história da arte. Mas, nas minhas peças, em vez de a representar de forma sexualizada, lembrando trabalhos executados por homens, apresento-a enquanto personagem forte que tem a sua própria agenda e cariz aventureiro – o mundo é dela! Tem unhas longas e pontiagudas, toma banhos de sol com os amigos, caminha através do fogo e passa tempo com as cobras. Sim, acredito que esta é uma forma de expressar mensagens sociais e políticas. As mulheres estão em ascensão e os direitos que nos foram roubados no mundo inteiro só mostram o receio que os homens têm do nosso trabalho.
MR – Segundo o que li, quem quiser encontrá-la deve ir ao estúdio. E, se lá não estiver, o melhor é espreitar a praia. Porquê e de que forma esta paixão se manifesta na sua prática?
LVH – A praia é um sítio onde encontro paz. Tenho em mim um grande frenesim e sinto que estou sempre a andar de um lado para o outro. Esse sítio entre a água e a terra, aparentemente no fim de tudo, onde podemos olhar para o horizonte e deixar a nossa imaginação à solta, é-me muito apelativo. Também adoro fantasiar sobre a vida no oceano. Um mundo totalmente diferente, do qual já fomos parte. É fascinante. E, embora seja um lugar que me permite respirar, é também uma enorme fonte de inspiração, onde gosto de estudar pessoas distintas que parecem fundir-se numa só, todas com os seus fatos de banho floridos e os seus chapéus-de-sol de múltiplas cores. A identidade é aqui posta de lado e esquecida temporariamente.
MR – E quanto ao futuro? Algum projeto?
LVH – Estou a trabalhar num grande projeto para a Art Rotterdam, a decorrer em fevereiro. É composto por um chapéu-de-sol de três metros de largura, acolchoado e pintado manualmente. A narrativa deste objeto gira em torno de cenas que encontram a sua origem nas inundações apocalípticas. Quero explorar a forte imagem da água a inundar a terra, recorrendo aos mitos e lendas que tentaram explicar este fenómeno. É um guarda-chuva colorido e ‘feliz’, mas o seu conteúdo é deveras sério. Exprime o meu receio da estética do “fim do mundo” que hoje em dia vemos frequentemente à nossa volta, com pessoas no TikTok em frente de um incêndio florestal ou a tirar selfies nas suas casas destruídas por uma tempestade. É um projeto que tenho vindo a trabalhar há algum tempo, desenvolvendo-o mediante uma perspetiva histórica e antropológica.
Numa tomada mais pragmática, vou participar no final de fevereiro numa residência na Índia, onde irei aprender tecelagem e tinturaria têxtil com uma família que transmite os seus conhecimentos de geração em geração há décadas. Mal posso esperar para penetrar no significado e simbolismo destes métodos antigos. Também quero dar um passo atrás e afastar-me do meu contexto atual para conhecer mais sobre a visão radicalmente diferente da vida que a maioria das pessoas na Índia tem, por contraste com a maneira como tratamos os nossos problemas e reflexões na Europa.