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Conceal/Convey – Select! Select! Select! – as obras de Beatriz Neves Fernandes no limbo entre o material e o imaterial

O Multiverso – Um Regresso ao Futuro, programa de exposições da Cooperativa de Comunicação e Cultura (CCC) para 2023, inicia-se com a primeira exposição individual de Beatriz Neves Fernandes e tem como mote a premissa de que «não existe uma realidade definitiva, nem uma ficção absoluta». Esta frase levanta já o véu sobre o limbo entre o material e o imaterial em que se transforma a Câmara Escura, galeria mais nova da CCC, com a presença das peças criadas em diversos suportes e formatos por uma jovem promessa da arte contemporânea que tem vindo a cumprir-se e a expor a sua obra desde 2016.

A participação num programa da RAMA – Residências Artísticas de Maceira e Alfeiria foi o primeiro contacto da artista com o panorama e o público torreenses. De volta a este território, ao contemplar o espaço da Câmara Escura, é inevitável que surjam entre a visão e a mente do espectador reminiscências de elementos que caracterizaram o movimento do Minimalismo a partir dos anos 50 do século passado, sobretudo pelas três peças metálicas que se destacam logo à chegada e o desenho sobre tecido (?) colocado entre estas.

Pode intuir-se, à primeira vista, uma aparente impessoalidade dos objetos artísticos, uma minimização do acaso, do acidental com significado estético, uma enfâse na superfície e a concentração no todo, em vez das partes, para transmitir uma ideia de unidade e facilitar uma comunicação clara e direta entre o objeto e o espectador, bem como, de certo modo, controlar a perceção deste último no espaço e no tempo. As três peças referidas, cujos títulos não são revelados, são, pois, marcadas por uma qualidade ligada à objetualidade, em que as particularidades de individuação não sobressaem, «escondendo-se» em favor da perceção do todo. Este fator remete imediatamente para o título da exposição, onde é admitido o jogo entre o que é revelado e o que a artista optou por ocultar (consciente ou inconscientemente), sublinhando a dificuldade da libertação da incerteza e a quase imposição, nascida no processo de criação artística, de selecionar características, caminhos e possibilidades em detrimento de outros.

Ao esmiuçar-se os significados inerentes às palavras Conceal/Convey – Select! Select! Select!, ao mesmo tempo que se avança no espaço da galeria, vendo as peças mais próximas e de diversas perspetivas, descobrindo as peças bidimensionais que não tinham ainda sido vistas, e tendo por guia as palavras da artista e de Rita Oliveira, fica-se a perceber afinal que a ligação ao Minimalismo não é tão linear e reveste-se de constrangimentos conceptuais com raízes filosóficas das quais brotam reflexões sobre o próprio entendimento do que é a Arte, a par de considerações sobre que dimensões formam o «ato criativo» (expressão usada por Marcel Duchamp para descrever o processo de criação artística).

Retome-se o percurso expositivo: o espectador está no centro da galeria, apreciou as obras junto à parede que se vê ao descer a rampa – só uma, o desenho de um armário com círculos repetidos, se encontra na parede; à direita, uma placa metálica também com círculos côncavos, colocada na vertical através de um apoio quase impercetível; à esquerda, aquilo que parece ser uma folha metálica dobrada sobre um bloco branco, também este praticamente invisível de alguns pontos do espaço. Já aqui, depois da aproximação aos objetos, se vai aferindo uma certa indecisão ou indefinição numa estética minimalista que ao longe e numa primeira impressão parecia mais sólida e com uma unidade compacta.

Passando pelo intervalo povoado pela folha metálica sobre o bloco, o contemplador depara-se com uma peça metálica suspensa, quase bidimensional e com recortes geométricos (repetidos, porém diferentes entre si), paralela à parede que, por sua vez, é paralela à rampa de entrada. Esta é talvez a obra que mais se destaca pelo caráter quase cenográfico que encerra, pelas possibilidades de fruição que proporciona e os efeitos de luz e sombra que impactam o espaço e condicionam ou enriquecem a leitura da(s) obra(s). Esse impacto é ainda exacerbado pelo aspeto quase transitório que apresenta no limbo entre o material e o imaterial mencionado anteriormente.

Se de um lado da galeria são vistos objetos mais facilmente relacionáveis e em harmonia, do outro encontram-se duas obras distintas dessa linha. A primeira, ao lado da peça suspensa, trata-se de um conjunto de auto-retratos fotográficos desfocados – quase com uma qualidade pictórica próxima da abstração, mas com uma plasticidade corpórea – e entrelaçados por meio de fitas brancas numa disposição que não se sabe se é intencional ou terá algo de espontâneo e gestual. Por fim, na parede mais escondida de quem entra, está uma tela isolada, que acaba por ser quase uma síntese da ambiguidade e incerteza presentes – ora mais visíveis, ora quase invisíveis – no percurso expositivo. Pela posição que ocupa e pela recorrência repetida aos círculos, poder-se-ia dizer que parece espelhar de forma distorcida o desenho e a peça metálica vertical colocados na e junto à parede oposta. No entanto, o fundo escuro com fios de tinta escorrida e uma mancha clara, meio fantasmagórica, que se pode pressupor aparentar o reflexo de alguém, rimam mais com a obra mais próxima (sobretudo pelas cores e figuras corpóreas desfocadas, também elas reflexos). Mais uma vez, este aspeto de transição parece afastar-se relativamente de um minimalismo aparente e adotar certas características mais próximas do expressionismo abstrato, mas, acima de tudo, revela uma faceta da exposição que faz repensar o processo de criação artística e a intervenção/participação do visitante.

Terminado o percurso pelas obras, a experiência estética de quem as viu pode parecer incompleta, pois ao que se pressupõe nas características de cada peça e se infere do seu posicionamento no espaço, acrescenta-se a posição e observação de cada espectador, refletindo a sua presença em cada obra. Surge, assim, uma necessidade de questionar quais as intenções de Beatriz Neves Fernandes ao criar estas peças. Na folha de sala, a artista afirma que estas traduzem «uma relutância na libertação do vício da incerteza (…) e na entrada no domínio terreno do material, que requer um processo de individuação, criando uma ponte permanente entre o não-ser e uma identidade definida», e é sublinhada a responsabilidade inerente a cada escolha que se materializa (ou imaterializa). Aponta ainda as palavras-chave em que assenta o processo criativo e o percurso expositivo em Conceal/Convey – Select! Select! Select! – ‘posicionar’ e ‘pressupor’. A primeira refere-se «ao imediatismo da existência material» e a outra «ao seu contexto universal/essencial, refletindo sobre a forma como a matéria/objetos adquirem significado através de determinado contexto e como isso molda noções de universalidade social». Daqui se depreende que o termo ‘posicionar’ estará intimamente ligado ao processo de criação da artista, com o que tencionou e o que concretizou, ao passo que ‘pressupor’ é algo levado a cabo pelo contemplador ativo que observa os objetos e assimila os significados adquiridos pelos mesmos conforme o contexto em que são expostos e as próprias experiências (estéticas e não só) de quem os observa.

A artista cita Hegel para dar conta do conflito entre as possibilidades infinitas das escolhas estéticas e os tipos de compreensão em que estas se relacionam com as formas que se materializaram efetivamente. Todavia, pela importância de que não só as intenções da artista, mas também as suposições do observador se revestem, e, bem assim, pelo convite a uma compreensão da realidade através do estudo e especulação sobre objetos artísticos que assumem um caráter simbólico e subjetivo, estabelecendo uma ponte entre o indivíduo, o mundo material e valores imateriais como cultura, arte e estrutura – outro nome parece pertinente para rematar estas reflexões. No ensaio The Creative Act, Marcel Duchamp afirma que a criação artística compreende dois pólos, o artista e o espectador, que se tornará a posteridade. Assim, relaciona o momento da criação da obra de arte com o conceito de «obra aberta» (de Umberto Eco), que só fica completa através do percurso entre os dois pólos, e, ainda assim, é passível de diferentes interpretações, conforme o sujeito que a cria e o que a recebe, e as condições em que a criação e a fruição acontecem. Esta tese vai de encontro às palavras de Rita Oliveira (da CCC) sobre a exposição e o seu foco não apenas na materialidade das peças, mas nos reflexos (e reflexões) de quem as observa – «As propriedades formais dos cofres de metal permitem obras que evocam questões sobre a intenção da figura refletida – ocultar ou revelar algo – uma série de peças que exaltam o paradoxo de representar uma imagem do que não pode ser visto e a possibilidade de utilizar a observação e reflexo para formular teorias do que não é observável».

Conceal/Convey – Select! Select! Select!, de Beatriz Neves Fernandes, está patente na Câmara Escura (CCC) até dia 18 de fevereiro e, no dia 4 (às 16h), a artista fará uma visita guiada à exposição.

 

Inês Joaquim (Torres Vedras, 1990) vive na sua cidade-natal e tem transitado entre esta e Lisboa. Após uma breve incursão pelo design na FBAUL, licenciou-se em História da Arte (FCSH - UNL), seguindo-se o mestrado em Gestão e Estudos da Cultura (ISCTE-IUL) com a dissertação “Organizações «inter-artes»: inovação ou reinvenção? O caso da Cooperativa de Comunicação e Cultura”. Foi nesta associação cultural torreense que iniciou o seu percurso profissional, que inclui posteriores passagens por organizações de diversas áreas artísticas, desde as artes visuais (na CCC) ao cinema (na Leopardo Filmes), passando por artes performativas como a música, o cinema de animação e o teatro (na sala de espetáculos Bang Venue e na In Impetus - Escola de Atores). Nestes espaços culturais, atuou em várias áreas, destacando-se o apoio à curadoria, a produção e gestão cultural, o apoio à comunicação e a gestão de candidaturas de projetos culturais a apoios financeiros.

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