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Cafeína e fenomenologia

No momento do café, não a bebida em si, mas o momento social que representa, revestimo-nos de determinados signos que fazemos chegar ao outro, próprios desse ritual que nos é tão próximo. Se acrescentarmos alguma frieza a este pensamento, talvez possamos afirmar que não me interessa tanto quem és, interessa-me mais o café que tomas comigo, ou, por outras palavras, importa-me o que trazes contigo para este momento comigo e de que forma gravitamos, juntos, na atmosfera de dois cafés. Interessa-me o que de ti vem até mim, durante o café que comigo bebes.

O referencial das obras presentes no espaço (algumas bidimensionais, outras tridimensionais) que se unem pelo campo ontológico da pintura, dentro do qual Luís Paulo Costa continua o seu trabalho sobre o real, como se a pintura fosse, pelo gesto do artista, uma pós-fiabilidade em relação ao que nos rodeia, remete para algo que se revela a todos os sentidos, para além do olhar. Chamemos-lhe, talvez, uma reportar da ausência testemunhada por estas imagens. Entre epílogos como Um quarto para dois ou Troco de dois cafés, o preâmbulo, ou mesmo o presente, parecem depender do espectador, olhando-o permanentemente. Se em Duas cadeiras vazias parece haver uma ideia de presente ausentado, em obras como Não te esqueças do azul há uma tentativa de captação do presente imediato, do instantâneo, do contacto primeiro com um determinado momento, por vezes, senão quase sempre, inapreensível, indizível. Talvez assim se esgotem as tentativas de captação disso mesmo, e surjam obras que, simplesmente, o procuram. Troco de dois cafés, por exemplo, é o resultado não apenas de um pagamento pecuniário, é como mostrar o que se traz no fim. Já o facto deste troco ser diferente de obra para obra (para além de Troco de dois cafés, há ainda Dois cafés I e Dois cafés III que, para além de outros elementos, incluem, tal como na primeira, moedas cobertas por acrílico), remete para uma diversidade da envolvência e contribui para uma ainda menor determinação do momento presente que se procura e quais as suas consequências, entre a arqueologia e o vestígio.

Parte-se da ideia mundana e até taciturna do troco, para que se veja a irónica objectificação (monetização, até) do retorno da experiência. Interessante será talvez pensar que, com este troco, se poderão pagar mais cafés, multiplicando-se as experiências cuja base constatamos nesta exposição.

Experienciamos, por fim, uma narrativa incompleta, que o é por ser tentada e que encontrará no espectador uma possível continuidade ou completude. Num momento último, surge perguntar por onde andam os corpos que viveram estas obras, que beberam estes cafés, que experienciaram os antes, os durantes e os depois inscritos nesta exposição. Há uma ideia latente de que a chegada do espectador é já tardia, o segredo talvez resida em saber olhar o que já não está.

Nas palavras de Luís Paulo Costa: “Dois cafés são duas pessoas e tudo o que está à volta. E à volta de dois cafés pode estar tudo.” – reside aqui a essência da exposição Dois Cafés, que conta com obras da sua autoria e com curadoria de Sara Antónia Matos, a visitar no MIAA – Museu Ibérico de Arqueologia e Arte de Abrantes, até dia 12 de fevereiro.

 

 

Daniel Madeira (Coimbra, 1992) é licenciado em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Estudos Curatoriais pelo Colégio das Artes da mesma universidade. Coordenou, entre 2018 e 2021, o Espaço Expositivo e o Projeto Educativo do Centro de Artes de Águeda. Atualmente, colabora com o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC).

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