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Entrevista com Patrícia Rúbio, autora da capa do mês

Do passado a memória é rastilho do que foi. No presente nutrimo-nos de reflexões-emoções que nos reportem aos tempos idos, na esperança de os aceder e, assim, lograr da sua essência. Irremediável desejo de perduração. Tantas lembranças falíveis que teimam em nos abandonar.

Mafalda Ruão entrevista Patrícia Rúbio, autora da capa do mês de janeiro da Umbigo, autora que encontra no gesso, o vetor apropriado para a rememoração do passado, num ímpeto curioso de perscrutar a ferida, aquela que anunciará os trajetos e os fantasmas. Toda uma história que, apesar de facilmente esquecida, estará para sempre preservada na carcaça do artefacto, se a ele lhe dirigirmos o olhar. Um ser, substância que, em verdade, conta muito mais sobre nós do que sobre o peso que a sustenta.

Mafalda Ruão – Qual é a tua relação com o vazio, ou o espaço negativo, que tantas vezes evocas?

Patrícia Rúbio – O vazio surgiu no meu trabalho quando comecei a trabalhar com gesso. Ao fazermos um molde trabalhamos também o espaço negativo. Comecei a compreender este motivo como uma parte não só da obra, mas também do nosso quotidiano. O vazio faz parte de nós porque com ele habitamos, é o ar que nos rodeia e não tendemos a ver. É um tema conceptualmente forte e cuja natureza tenho vindo a apurar.

MR – O gesso é precisamente o principal ponto de partida da tua criação. Porquê o gesso? Qual o significado que tem para ti?

PR – É uma matéria que me fascina, desde que a conheci, pelo potencial que tem e por ser muito versátil. Com gesso posso replicar objetos com diferentes matérias através de moldes, tal como um puzzle. É uma técnica desafiante e complexa. Interessa-me a capacidade que o gesso tem de captar o detalhe e a possibilidade que me dá de jogar com a sua sensibilidade e efemeridade. Parece um organismo, passa do pó ao estado líquido, endurece, de húmido a seco, de frio a quente e de novo a frio… Crio como ele uma relação muito próxima através do tato. Gosto de pensar o gesso como um documento, uma fotografia de relevos. Para o meu trabalho é dos materiais mais completos que já utilizei e sinto que a cada projeto surge uma nova oportunidade de o conhecer melhor.

MR – Olho para o teu corpo de trabalho – Para ti avô, 2016; Arquivo morto; 2018; Marcas presentes, 2019; O tempo liberta-nos, 2019; Reminiscência de um lugar, 2019 – e pressinto o elemento tempo. Remetendo-nos a uma ideia de passado, do eco que persiste e dos efeitos da passagem dos anos. O que te conecta ou traz de volta recorrentemente a esse tempo já ido?

PR A memória é uma companheira pouco fiável. Quanto mais olho para trás mais inquieta fico, não posso recuperar o que já foi, e de tudo apenas me restam breves passagens visuais e sensações. É desconcertante não conseguir resgatar o presente, é tudo tão fugaz. Tento também encarar a passagem dos anos com um olhar positivo. Costumo contemplar o passado quando quero guiar-me para o futuro, pelo que os meus trabalhos são como diários emocionais que vou revisitando para não esquecer os eventos que me marcaram. Tenho também o hábito de recolher e colecionar objetos que identifiquem um lugar ou uma pessoa, e acabo por espelhar esse gesto nas minhas obras.

MR – Exatamente a propósito do teu interesse em colecionar referentes doutros tempos, o que exprime Arquivo Morto, 2018? Não é todo o arquivo morto até lhe tocarmos?

PR – Arquivo Morto foi uma experiência intuitiva que compreendeu um momento documental e performativo. Estava a explorar técnicas para transferir a marca de uma determinada superfície para o gesso. Nesse processo surgiu este trabalho. Numa espécie de corrida contra o tempo, trabalhei com a duração do endurecimento do gesso, deitando o tecido na superfície, embebido no material até este não me permitir continuar. No final empilhei as folhas com o intuito de abandono, para marcar o fim da ação, surgindo assim o seu nome. Estando abandonado é como se não existisse, ou estivesse ‘morto’ e só revive quando com ele cruzo o olhar, mudo a posição ou a ordem.

MR – Ainda na mesma linha de raciocínio está Totens, recentemente em exposição na Galeria Municipal Palácio Quinta da Piedade. Que objetos são estes que trazes para exposição e de que forma conferem eles identidade, alma e sentido ao espaço?

PR – São objetos que encontrei na garagem dos meus avós. Gosto de olhar para aquele lugar como uma cápsula do tempo, com objetos que ali estão guardados e abandonados. No seu processo de produção tive a companhia da minha avó, enquanto “escavava” o espaço e resgatava alguns deles, perguntava-lhe o que significavam e que histórias contavam. Também percebi que a escolha destes Totens advém da minha experiência, pois acompanhei a evolução daquele espaço e de quem o foi habitando. A garagem, se não tivesse aqueles objetos e dispostos daquela forma, não seria aquela garagem. Todos os intervenientes responsáveis pela criação daquele cenário estão ali representados, mesmo sem estarem presentes e, desse modo, conferem-lhe sentido. Criamos e dispomos objetos e essa é a nossa marca, a nossa identidade materializada num lugar.

MR – Referes em Marcas Presentes, 2019, que se instala “um momento de contemplação e reflexão – as marcas do presente tornar-se-ão memórias no futuro.” Dirias que foste mais longe com estas peças, ambicionando uma mensagem mais ampla (por exemplo ecológica ou política)?

PR Sim, foi também com o intuito de sensibilização que as criei. A arte é um dos veículos que nos estimula a capacidade de observar e escutar. Em Marcas Presentes apresentei duas confrontações: uma cratera resultante de um impacto de meteoro e o romper de um iceberg, um momento muito longe de nós e um muito presente. Na altura pesquisei diversos artigos sobre as catástrofes naturais, tanto estimuladas pelo Homem ou exteriores a ele, e o impacto que estas tiveram e terão na nossa sociedade e nas restantes espécies. Coexistimos como um único organismo, a natureza ensina-nos isso, e em cada cadeia é possível observar o equilíbrio frágil que nos une, ação causa reação.

MR – Acreditas, assim, ser possível conciliar numa obra de arte a estética, a poética e a envolvência com os problemas iminentes globais?

PR – Sim, o artista e a sua obra são um só, sendo que a obra é o reflexo das inquietações do seu criador e, consequentemente, da sua visão sobre o mundo, da sociedade onde está inserido e da sensibilidade estética e poética à sua envolvência. É o que tento fazer com o meu trabalho, para mim sempre foi mais fácil comunicar através da linguagem plástica.

MR – O que se segue nos teus planos para o futuro?

PR – O primeiro objetivo a alcançar será transitar para um espaço de trabalho mais amplo. A escala do que produzo é muito influenciada pelo lugar onde estou a criar e encontro-me num momento de expansão. Outra ambição que tenho é a de continuar a estudar, aprender e aprimorar técnicas, estímulo bastante positivo no meu processo criativo.

Mestre em Estudos Curatoriais pela Universidade de Coimbra, e com formação em Fotografia pelo Instituto Português de Fotografia do Porto, e em Planeamento e Gestão Cultural, Mafalda desenvolve o seu trabalho nas áreas de produção, comunicação e ativação, no âmbito dos Festivais de Fotografia e Artes Visuais - Encontros da Imagem, em Braga (Portugal) e Fotofestiwal, em Lodz (Polónia). Colaborou ainda com o Porto/Post/Doc: Film & Media Festival e o Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema. Em 2020 foi uma das responsáveis pelo projeto curatorial da exposição “AEIOU: Os Espacialistas em Pro(ex)cesso”, desenvolvido no Colégio das Artes, da Universidade de Coimbra. Enquanto fotógrafa, esteve envolvida em projetos laboratoriais de fotografia analógica e programas educativos para o Silverlab (Porto) e a Passos Audiovisuais Associação Cultural (Braga), ao mesmo tempo que se dedica à fotografia num formato profissional ou de, forma espontânea, a projetos pessoais.

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