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Bestiário – Museu Fora de Si

Qual é o elo entre alguns azulejos do século XIX e um género literário medieval? São os dois elementos basilares de uma exposição inaugurada no último dia 11 de novembro, em Belas, no concelho de Sintra.

Como? Bem, vamos descobrir.

Trata-se da exposição Bestiário – Museu Fora de Si, patente até 26 de fevereiro de 2023 na Adega da Quinta Nova da Assunção com curadoria de Victor dos Reis. O projeto Museu Fora de Si tem como o seu objetivo exibir as obras da Coleção Municipal de Arte e as demais coleções artísticas e científicas do Município de Sintra em locais diversos do concelho em espaços invulgares para exposições. Esta primeira fase do projeto é composta por três momentos expositivos distintos, uma por semestre exibida em locais e a propósito de temáticas diversas entre si.

Apesar de apresentarem divergências nas suas concepções, todas as três exposições convergem-se num tríptico, onde se organizam como capítulos de um único livro. Num argumento que procura diálogos entre os locais de exposição com as obras das coleções. Outra valência do projeto, ainda assente na sua vontade em integrar as populações com o património cultural, é a escolha de um conjunto de escolas e bibliotecas da área geográfica dos locais expositivos para abarcar uma pequena extensão da exposição.  Desta forma, o Museu Fora de Si propõe um maior envolvimento da comunidade local com as exposições.

Em 1860 deu-se o início da construção da Quinta Nova da Assunção, pelo José Maria da Silva Rego, sobrinho e herdeiro do Gregório da Silva Rego, armador e comerciante com ligações ao Brasil.  A Quinta Nova da Assunção é um palacete que goza do novo gosto em revestir espaços usuais com azulejos. Estes, feitos em padronagem semi-industrial de pintura manual, foram feitos por Ferreira das Tabuletas, pintor de azulejos lisboeta cujas suas cores revestiram diversos sítios emblemáticos da cidade, como a do interior da Cervejaria Trindade. Os azulejos da Quinta exibem painéis tradicionais e românticos, mas também um gosto pela exuberância do tropicalismo e dos animais característicos da fauna brasileira.

Onças, pássaros coloridos e plantas dividem espaço com leões e heráldicas que compõem os painéis da Quinta, situados num labirinto onírico onde configura-se um grande apanhado de referências visuais, influenciados pelos intercâmbios transatlânticos sob o qual o país submerge-se desde o século XVI. Esta viagem na porção exterior do jardim nos conduz até a Adega, espaço de 250 metros quadrados onde se realiza a exposição.

Por sua vez, os bestiários, ou livros das bestas, que começaram a popularizar-se na Idade Média entre as camadas eclesiásticas, correspondem a uma espécie de proto enciclopédia – ora visual, ora textual – de animais ou criaturas fantásticas. Caracterizam-se pela descrição formal das bestas e pela interpretação de cariz simbólico sob cunho teológico, como símbolos de vícios ou virtudes dos ensinamentos da moral vigente.

Como já mencionado anteriormente, o projeto Museu Fora de Si, pretende utilizar-se tanto das coleções artísticas quanto das coleções científicas do Município, o que implica na exibição de peças inéditas, jamais antes mostradas ao público. Ou, por mais que já tivessem sido exibidas, são dispostas aqui em contextos que desafiam a sua ordenação natural.

Expor num edifício como a Adega da Quinta Nova da Assunção demanda um esforço do curador em respeitar e valorizar um local que desvela tantos signos diversos nas suas paredes. Trabalho exímio realizado pelo curador Victor dos Reis, que compreende e explora muito bem tantas camadas de diálogos propostas pela heterotopia da Quinta.

A imagem de divulgação da exposição é a Three craws sat upon a waa de Susan Norrie (1953), no entanto, vejo a obra Aberystwyth de Paula Rego (1987) como a verdadeira peça central da exposição. A obra apresenta-se numa pequena folha de papel horizontal, contendo uma ilustração feita a água-forte e água-tinta. Quatro figuras compõem o plano, respaldadas por um cenário natural ao fundo, com uma montanha à esquerda e uma superfície plana que corre a ilustração de uma ponta a outra. As figuras, duas aparentemente humanas e duas supostamente animalescas, apresentam-se num movimento dinâmico, imersos numa possível corrida. O limiar entre a humanidade e a bestialidade, que se dissolve no compasso de um sopro em Aberystwyth é a síntese de Bestiário.

A exposição, por situar-se numa antiga adega, abarca consigo a característica aura soturna pouco iluminada de um edifício como estes. Aspecto que eleva o contraste percebido pelos nossos olhos de visitantes por ora focarmos a nossa visão numa gravura, ora num fóssil de réptil. Esta diferenciação na apreciação dos diversos signos que evocam significantes distintos imersos num emaranhado de contextos é onde assenta o sublime da exposição.

A beleza de Bestiário é constituída pela aceitação da existência de todas as fontes de referências presentes no preâmbulo sintrense, que constituem em si uma outra realidade. Que apesar de não ser tão ficcional como os bestiários medievais, desvela em si a característica imanente de um gabinete de curiosidades, a de uma viagem através de um mundo desconhecido.

Maria Eduarda Wendhausen (Rio de Janeiro, 2000). Licenciada em Ciências da Arte e do Património pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e é aluna do mestrado em Crítica, Curadoria e Teorias da Arte pela mesma instituição. Estudou também na Sotheby's Institute of Art no curso Writing for the Art World, From Idea to Submission. Atua como escritora e curadora na cidade de Lisboa, Portugal. Colaborou com o Manicómio no espaço de exposições Pavilhão31 e com a Carpe Diem Arte e Pesquisa. A sua última atuação como curadora, realizou-se na ARCOLisboa2022 com a exposição CRACK THE EGG do Prémio Arte Jovem Millennium bcp, em 2022. Em 2023, começou a colaborar com a CentralC como content manager. Escreve regularmente para revistas científicas e especializadas como freelancer no ramo da crítica da arte, assim como features e ensaios académicos, com o intuito de divulgar e promover para o público geral, as múltiplas facetas dos estudos artísticos e os seus desdobramentos na vida quotidiana.

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