Que te seja leve o peso das estrelas no CACC
Dando continuidade a um ciclo que pede de empréstimo obras de várias coleções privadas, o Centro de Arte Contemporânea de Coimbra apresenta-nos, até dia 22 de janeiro, a exposição Que te seja leve o peso das estrelas, com curadoria de José Maçãs de Carvalho.
Reunindo um conjunto de obras provenientes de uma coleção privada de Coimbra, da Coleção de Arte Contemporânea do Estado e Coleção do Município de Coimbra, a mostra desenvolve-se a partir de trabalhos de Helena Almeida (1934-2018), cuja obra dá o mote e articula as três ideias centrais da exposição: o lugar/casa, o processo criativo e o corpo como intermediário. Os outros artistas confirmam o atelier como lugar de transformação e de mudança, da ideia à forma ou à metamorfose, criando obras com uma atmosfera processual nas quais o corpo é matéria primordial.[1] O corpo que é também matéria para Al Berto, a quem se pediu por empréstimo o título da exposição, sintetizando o programa curatorial em torno da casa, do processo e do corpo.
É com um dos raros vídeos de Helena Almeida que se inicia o nosso percurso expositivo, obra que sintetiza o interesse da artista pelo corpo – que regista, ocupa e define o espaço- o seu encontro performativo com o mundo e a importância que atribui ao atelier que foi, também do pai, o escultor Leopoldo Almeida (1989-1975). Numa litania quase religiosa, uma penitência a ser cumprida no limite do trágico[2], observamos Helena Almeida a deslocar-se de joelhos, qual mártir, pelo atelier, beijando o chão e manipulando objetos de trabalho do seu dia-a-dia, os ossos do seu ofício – um banco e um candeeiro – como uma espécie de ritual. Num ambiente de peregrinação dessacralizada, constatamos a entrega da artista e do seu corpo ao espaço de trabalho e de memórias – o atelier- campo no qual opera e reforça o caráter performativo da sua prática, explorando noções de espaço e perceção. À medida que visionamos a obra somos acompanhados pelos sons dos movimentos de Helena Almeida e dos adereços utilizados, sendo no final do vídeo integrado um elemento nunca explorado pela artista: a música – um pequeno excerto da ópera Orfeu e Eurídicede Gluck, que evoca a condição, presente no mito, de nunca olhar para trás e o tema da descida aos infernos, conferindo um significado simbólico ao local. Num confronto e por oposição ao vídeo de Helena Almeida observamos, no mesmo espaço, o desenho Untitled ( The future is now) 2018, da dupla Muntean & Rosenblum que apresenta como protagonistas, num cenário bucólico, um grupo de adolescentes cujas expressões faciais e linguagem corporal parecem revelar-nos solidão e fragilidade emocional, numa obra que conjuga simultaneamente banalidade e pathos espiritual. Trabalhando a partir de imagens a contemporaneidade e a cultura popular atual, a dupla recorre a matrizes pictóricas, numa evocação à história da arte e da pintura, sendo-nos possível reconhecer na figura da mulher deitada no chão Vénus ao Espelho, c.1644-48, de Diego Velázquez. Sendo o grande interesse da obra de Muntean & Rosenblum o universo das imagens vernaculares aliado à tradição pictórica, destacamos a decisão curatorial em opor o desenho da dupla à obra videográfica de Helena Almeida, artista que na sua prática irá questionar o espaço pictórico e explorar os limites físicos da pintura, zona de origem do seu trabalho artístico.
É através da fotografia que Helena Almeida supera a exterioridade da pintura, tornando-se parte integrante da obra, construindo um espaço onde pode estar, permitindo que o ser e o fazer coexistam no mesmo medium. As experiências fotográficas de Helena Almeida e a introdução da linha no seu trabalho são-nos reveladas, no segundo momento expositivo, numa prática incorporada do desenho e da pintura. Observamos o desenho que se torna bidimensional, a linha que se materializa e sai do suporte através da aplicação de fio de crina sobre a superfície do papel, tornando desenho tangível e acessível ao espectador. As qualidades orgânicas e dimensionais da crina de cavalo voltam a ser exploradas nas duas fotografias a p/b da série Desenho habitado,1978, construindo-se uma sequência narrativa, em que a mão da artista surge em primeiro plano: inicialmente segurando um lenço de papel no qual a linha negra se inscreve e que na segunda imagem se liberta, materializando-se, adquirindo uma presença corpórea e sólida que os dedos da artista pegam e sentem. Em Saída negra, 1980, o corpo da artista é acionado enquanto veículo coreográfico, desenvolvendo uma narrativa através de imagens em sequência, permitindo ao espetador observá-la em movimento, reforçando-se a ideia cinematográfica da sua obra. A expressão de estágios interiores e o recurso ao corpo enquanto suporte da sua arte, são-nos revelados no tríptico Dentro de mim,1998. Não se tratando de um autorretrato, observamos o corpo da artista que, absorvido no seu movimento, se arrasta pelo atelier sem nunca nos revelar o rosto que na última imagem é ocultado através da introdução de uma pincelada de tinta azul, integrando Almeida a força do ato e a matéria da pintura[3] no registo fotográfico e no seu corpo. A obliteração da identidade, o corpo enquanto matéria e a ideia de processo que encontramos nos trabalhos de Helena Almeida percorrem muitas das obras presentes na exposição: a transparência do corpo que Lourdes Castro (1930-2022) nos apresenta em Furrows, 1974, por oposição ao corpo pesado de Almeida, o vazio que define a figura, a sombra cujos contornos exploram a fronteira entre presença e ausência, entre materialidade e imaterialidade. No depuramento do desenho a grafite de Julião Sarmento constatamos a transparência do corpo fragmentado e em movimento que se procura libertar, gesto em que o nosso olhar se concentra. A expressividade expectante das obras, aparentemente inacabadas na sua narratividade, rostos que se ocultam e a ideia de metamorfose, acompanha-nos nas presenças misteriosas e espectrais de Crystal Girl nº84, 2014, de Noé Sendas (1972), e na sombria colagem Untitled study for self-portrait as Hitler, 2012, de Adrien Ghenie (1977); no dinamismo e qualidade etérea dos desenhos de Jake Wood-Evans (1980): torsos masculinos cuja intensa luminosidade sobressai do fundo negro do papel num momento suspensão, beleza e dramatismo. Suspensão da realidade e luminosidade que reencontramos em Pinocchio de Jorge Molder (1947), máscara do artista, que à semelhança de Helena Almeida oblitera a sua identidade, confrontando-nos com a imutabilidade de um rosto e o encontro do seu olhar com a réplica que regista em fotografia. A atmosfera processual atinge o seu auge em A portrait of a storm, 2022, de Teresa Murta (1993), narrativa pictórica dominada por cores quentes – como um fogo na tempestade – e formas abstratas, numa subversão entre o real e o fantasioso.
No último piso da exposição confrontamo-nos com o diálogo que se estabelece entre as fotomontagens de Noé Sendas e Carla Cabanas (1979), artistas que recorrendo a estratégias de manipulação e edição nas fotografias se aproximam de Helena Almeida. Observamos as pequenas imagens a p/b, postais eróticos vintage, nas quais Sendas intervém com formas geométricas,evocando memórias de modernidade em imagens anónimas que nos revelam pernas femininas e sapatos negros evocando-nos Seduzir de Helena Almeida. Em Sometimes it’ is so hard to see, 2020, de Carla Cabanas, a memória e a suspensão do tempo habitam a paisagem e o corpo sobre o qual a artista intervém aplicando folha de ouro, num exercício simultâneo de ocultação e valorização.
A encerrar a exposição deixamo-nos seduzir pela configuração orgânica e delicadeza de movimentos da escultura em ferro Estás perto de mim, 2015, de Rui Chafes (1966). Como se tivesse acabado de ganhar forma, a obra possui uma intensidade corporizada no espaço, numa conjugação entre peso e leveza, rigidez e fluidez que surpreendem o visitante. Na proximidade com a escultura observamos o corpo negro em formação na pintura de Markus Oehlen (1956), Am wasser?, 1993, forma amorfa que se move livremente, como a água sugerida pelo título, sobre as várias camadas pictóricas. É com Seduzir, 2022, de Helena Almeida que terminamos o nosso percurso, fotografia a p/b que tem como protagonistas os sapatos pretos de tacão alto, símbolo associado à sedução feminina, e o corpo da artista que com o seu gesto coreografado afirma a sua presença no campo da representação sem necessidade de identidade. Sobre o registo fotográfico a introdução da cor vermelha, num apontamento de dramatismo, chama a atenção para o sapato descalço no chão do atelier, como quem afirma que Seduzir implica dor e sacrifício.
[1] CARVALHO, José Maçãs de – Que te seja leve o peso das estrelas, folha de sala da exposição, 2022.
[2][2] SARDO, Delfim – Transubstanciação, (folha de sala), abril 2013.
[3] ALMEIDA, Bernardo Pinto – “Signos de uma escrita imóvel”. In Helena Almeida: A minha obra é o meu corpo, o meu corpo é a minha obra. Porto: Fundação de Serralves, 2015, p. 30.