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Mulher-Manifesto para sempre Novas Cartas Portuguesas

O que há de novo no novo?

É certo que tudo é novidade ao seu princípio. Todavia, o novo é volátil. Dispersa-se naturalmente, depressa reaparecendo como algo habitual. Porém, o novo de agora naquilo que outrora o foi, mas hoje é passado, traz de volta a novidade revestida à luz do seu tempo. Eternal return[1]. Segundo Nietzsche, um compromisso para com a história. Uma afirmação do Ser.

See this moment!” I continued. “From this gateway Moment a long eternal lane stretches backward: behind us lies an eternity.

Must not whatever can already have passed this way before? Must not whatever can happen, already have happened, been done, passed by before?

And if everything has already been here before, what do you think of this moment, dwarf? Must this gateway too not already – have been here?

And are not all things firmly knotted together in such a way that this moment draws after it all things to come? Therefore – itself as well?

For, whatever can run, even in this long lane outward – must run it once more! –[2]

Qual é o poder das palavras? Esta é a pergunta do documentário de Luísa Sequeira e Luísa Marinho, recém-estreado na 20ª edição do Doclisboa. E também uma certeza após a leitura de Novas Cartas Portuguesas, obra que deu mote ao mesmo documentário e cuja publicação celebra cinquenta anos em 2022. Interrogação provocativa das Três Marias, suas autoras, cujo eco persiste. Este ano, sobretudo, consumado tanto como peça de teatro, como exposição temporária, enunciando valores que, desde sempre, revelam uma atualidade e premência que apontam e corroem a aparente estabilidade das estruturas sociais e políticas e, também, individuais.

Na década de 70, Novas Cartas Portuguesas afrontou a ditadura e a moral de um poder nacional estabelecido no masculino que se arrogava ao direito de decidir o que às mulheres convinha ou servia. Foi como uma bandeira do feminismo, o que só reforça o impacto e o peso cultural da literatura pela pluralidade de interpretações que induz, as relações que estabelece e as ações que impele. Hoje, Novas Cartas Portuguesas continuam novas: factuais, controversas, essenciais. Caminho que segundo Nietzsche (we) “must run it once more”. A comprová-lo está a inauguração da exposição Novas Novas Cartas Portuguesas, nas Galerias Municipais de Lisboa – Galeria Quadrum, no dia 13 de outubro, numa altura em que se continua a pleitear pelos direitos das mulheres e da comunidade LGBTQIA2S+.[3] Uma exposição que parte do corpo para exaltar o feminismo e perspetivá-lo como forma de pensamento e de ação, capaz de instigar consciências sociais e políticas, romper com alienação da sociedade e superar as barreiras das desigualdades de género, para a consolidação de um novo modelo existencial, mais inclusivo e igualitário.

Navegamos entre a violência tácita, ressonância dos Echoes de Sara Graça, entre o silêncio da casa-prisão e a cadência sufocante de um movimento de rotina. Até à menina-borboleta, metamorfose desejada. Desejo de evasão, em Problema na Casa, materializado na cortina de missangas que sugere passagem, adensada pela brisa-quebra suscitada pelo material desfeito. Vê-se um quase corpo – será mulher? – que o atravessa e do qual restam apenas vestígios dessa transição.

Sensação similar de abuso e intimidação vem de Aleta Valente, onde convergem sujeito, objeto e suporte. Bárbara, personifica a história verídica da presidiária que deu à luz dentro da cela. Aqui, maternidade, marginalidade e horror colidem. Até quando continuará o estado a ignorar as especificidades de género no sistema prisional? Já, Marque um X para cada aborto que você já fez, cru e corajoso, é uma carta aberta à liberdade de expressão que aspira liberdade de ação.

Com um pé no ativismo artístico, e outro nas manifestações simbólicas (inevitavelmente políticas) que instigam os modelos de poder instituídos, com vista à ressignificação de género e dos estereótipos estéticos, vemos os vinis de Miss faxina, Material girl, Sua beleza é uma arte e Queimada de Aleta e as pinturas figurativas de Francisca Sousa. Nos primeiros a mulher que posa, mira o observador, num formato ampliado e refletor que o insere na obra, simultaneamente confrontando-o com os próprios dogmas. Objetificação do corpo da mulher, crítica aos padrões de beleza estipulados e ao trabalho de género; cujos títulos satirizam e contestam o estereótipo feminino onde os corpos se instrumentalizam, aptos a várias funções. Os pictóricos gritos de libertação de género de Sousa mostram a mulher que se opõe à masculinidade, desnuda-se de pudores e faz do utensílio de cozinha a sua voz; e também Florbela Espanca, ela mesma ativista e poeta feminista da história moderna portuguesa. Irónico frente a frente de Boyfriende Quarantine Delights transparece sexualidade e emancipação; e vejo um piscar de olho a Sóror Mariana Alcoforado em Aula de Costura, numa versão contemporânea e provocadora daquilo que a clausura poderia significar. Afinal a pintura está sempre aberta à subjetividade.

Contraponto harmónico com a narrativa escrita no masculino, representada por Audun Alvestad. Visão aparentemente onírica, composta por cenas triviais e indivíduos “comuns”, que se abre, porém, num subtil ensaio sobre heteronormatividade, exploração dos papéis de género e das estruturas sociais estabelecidas.

Fala-se de resistência e contextualizam-se os factos através dos poemas escritos por Maria Teresa Horta, concomitantes à documentação fotográfica de Jorge da Silva Horta que acompanhou o julgamento das Três Marias. Mergulhamos profundamente na dinâmica histórica dos anos 70 com Les trois portugaises, documentário de Delphine Seyrig – também ela reconhecida figura do feminismo francês – ao revistar o caso português através das ações de apoio e divulgação do livro, ocorridas em Paris entre março de 1973 e setembro de 1974, onde se destacam a leitura-espetáculo “La nuit des femmes” e a manifestação em Notre Dame em 1974.

Destacam-se vozes e vontades similares nos filmes de Rita Moreira, onde se ouve em Ti-Grace Atkinson – Uma biografia de ideias Marriage and family are institutions as corrupted as slavery. They must be abolished as slavery was”. Um retrato da ativista feminista norte-americana, pioneira do lendário Women’s Movement, criado no início dos anos 70, também ela referência de Novas Cartas Portuguesas. Enquanto Marielle Franco – síntese de todas as lutas das mulheres brasileiras – é motivo do documentário Caminhada Lésbica por Marielle, o qual acompanha o protesto de ativistas feministas, mulheres e comunidade LGBT contra o feminicídio e o lesbocídio; focado na sua resistência face à crescente violência de que são alvo no Brasil.

Em duas ocasiões, uma desafiante expressividade erótica interroga-nos sobre o significado de ser mulher. No centro, o compartimento circular que encerra A transformação do mundo de Aura dá-nos uma resposta clara quando o penetramos. Há um certo prazer neste secretismo. Envolvidos naquele espaço, mais do que voyeurs (somos forçados e absorvidos naquela magnitude carnal), tornarmos a peça real, somos participantes vitais do seu alcance. Como refere o curador, Tobi Meier, para a artista “as Três Marias também evocam o surrealismo de Hieronymus Bosch, o quadro A Origem do Mundo de Gustave Courbet, e as Étant donnésde Marcel Duchamp.” Plena afinidade entre o mote literário e os baluartes da história da arte. Em contraste com a alusão de Fabiana Faleiros, audível e explícita, ao prazer da masturbação, desde sempre reprimida, disciplinada e menosprezada, destacando a conexão que esta permite a nós mesmos, ao nosso corpo e àquilo que intimamente desejamos. Na genealogia deste gesto, Faleiros percorre a história da construção de um corpo definido no feminino, na forma de Mastur Bar, uma coletânea de objetos que refletem sobre a palavra e o seu conteúdo.

O epílogo, literal e alegórico, encontra-se em Caio Amado Soares. Club Splendida, série web experimental ficcional, confronta-nos com os iminentes problemas globais e as persistentes dúvidas existenciais individuais. Com o planeta prestes a colapsar, um grupo de amigos vê numa nave espacial e na escapatória, forma de encontrar respostas para a vida. Visão antropocêntrica, utópica e surrealista, não tanto pelo seu mecanismo (já não o é), mas porque a evasão não traz resoluções, apenas mais desafios. Aqueles que carregamos impreterivelmente connosco, enquanto a eles não nos dirigimos.

Seja em que formato for, expressar o prazer, o corpo feminino, a luta e a sobrevivência das mulheres, é algo profundamente revolucionário. Esta é a realidade: AINDA é algo profundamente revolucionário. Até quando continuaremos a falar de feminismo e revolução como díade indivisível, não valendo o primeiro como bem uno, adquirido, sem necessidade de rebelião? O meu corpo é meu. Qual é afinal o poder destas palavras? E quantas mulheres e meninas em todo o mundo podem afirmá-lo livremente?

A exposição Novas Novas Cartas Portuguesas está patente até dia 26 de fevereiro.

[1] um dos conceitos filosóficos centrais de Friedrich Nietzsche, também discutido por muitos outros pensadores.

[2] Friedrich Nietzsche, Thus Spoke Zarathustra. Third Part; On the Vision and the Riddle, 2.

[3] Lésbica, Gay, Bissexual, Transexual/Transgénero, Queer e/ou Questionando, Intersexo, Assexual, Dois-Espíritos e as inúmeras possibilidades de orientação sexual e de género com que cada pessoa escolhe se autoidentificar.

Mestre em Estudos Curatoriais pela Universidade de Coimbra, e com formação em Fotografia pelo Instituto Português de Fotografia do Porto, e em Planeamento e Gestão Cultural, Mafalda desenvolve o seu trabalho nas áreas de produção, comunicação e ativação, no âmbito dos Festivais de Fotografia e Artes Visuais - Encontros da Imagem, em Braga (Portugal) e Fotofestiwal, em Lodz (Polónia). Colaborou ainda com o Porto/Post/Doc: Film & Media Festival e o Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema. Em 2020 foi uma das responsáveis pelo projeto curatorial da exposição “AEIOU: Os Espacialistas em Pro(ex)cesso”, desenvolvido no Colégio das Artes, da Universidade de Coimbra. Enquanto fotógrafa, esteve envolvida em projetos laboratoriais de fotografia analógica e programas educativos para o Silverlab (Porto) e a Passos Audiovisuais Associação Cultural (Braga), ao mesmo tempo que se dedica à fotografia num formato profissional ou de, forma espontânea, a projetos pessoais.

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