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Didier Fiúza Faustino no Maat ou uma odisseia aos corpos

Aterrou na sala oval do Maat, um laboratório de experimentação. Podia ser a cenografia para um programa de testes desenvolvido na NASA, ou talvez o plateau de um enredo sci-fi, mas é uma retrospetiva do trabalho de Didier Fiúza Faustino (França, 1968) ao longo das últimas três décadas. Exist/Resist é além disso a primeira mostra do experimentalista luso-francês, em território nacional, e uma das maiores com carimbo institucional. O título é retirado de duas obras: Exist (2016) / Resist (2017) – e procura sintetizar as tensões, os conflitos e as opressões geradas pelo Design e Arquitetura (nos corpos), a resistência à normativa social e outras inquietações de Faustino sobre o corpo e o espaço.

Arquiteto-designer-artista, com hífen entre designações, uma vez que na sua prática, a linha de separação é um ténue fio condutor entre as disciplinas. Os limites de cada uma das matérias são desafiados para deixar claro o objeto do estudo: o corpo. O corpo escala na arquitetura (a temática da habitação vive presente no ADN da exploração criativa de Faustino), o gesto do corpo no lugar; o corpo-objeto e a bipolaridade do género que “atribuímos” às formas. Na exposição estão bem presentes todas as temáticas e há uma iconografia associada a cada uma. Dividida em 4 grandes temas: Habitação e Resistência; Design como Resistência; Fronteiras de Corpos; Agonismo no Espaço Público, e por 2 salas em 17 módulos, a exposição é orgânica, ergonómica e lúdica.

O imponente design expositivo é assinado pelo atelier do arquiteto – Mésarchitecture. No primeiro momento, na icónica sala oval, um casco de navio (entre a definição de navio e o estrangeirismo space-ship), luz branca, ambiente ascético e vitrinas altas. Módulos separados e recortados por formas e cruzamentos circulares que deixam ver o miolo e o interior pintado de azul elétrico. Um azul entre aquele que Yves Klein patenteou[1] e o azul que a memória visual logo associa à multinacional IKEA. Talvez não sejam referências inocentes, primeiro porque a relação com o conforto do lar está implícita no discurso de Faustino. The show must go home (2013) e Home Suit Home (2013) ou o protótipo para o habitáculo One square meter house (2003-2006) são reveladores da sua reflexão sobre a lar[2]. Depois, Faustino apresenta uma peça inspirada na célebre fotografia de Yves Klein, Leap into the void (1960), numa das extremidades da sala oval. Opus Incertum (2008) remete para a vertigem (ou quem sabe o Vertigo (1958) de Hitchcock), o paradoxo entre o conforto e a queda, o medo de cair ou o desejo de cair. Em letras murais na parede côncava lê-se: You are invited to try me out. Faustino desafia-nos a experimentar a consciência da ausência de ergonomia na queda sobre o vazio (“how do you feel” – ouvia-se em inglês alguém perguntar a um visitante que se deita sobre a peça, a resposta chega rápido – “terrible“).

A ideia de “try me out” é aliás um statement que orienta a visita. Ora subimos por uma escada telescópica para ver a exposição de cima, sentados num maternal nicho (Asswall, 2003); espreitamos as diferentes montras navegando pelos vários suportes, como se de uma feira de mobiliário se tratasse (ou mesmo de uma visita guiada à fábrica Vitra). Circulamos em torno dos objetos, das maquetas, das esculturas com o corpo num nível e o olhar num outro ou saltamos a bordo de uma Democracia Portátil (2006-2022), um bunker militar, uma ágora itinerante que nos lembra que: ” (…) a liberdade de expressão não é garantida e precisa de proteção”.[3]

Atravessamos a segunda sala ao som de Don’t trust Architects (2010-2022)[4]. Uma instalação sonora multilingue em loop, um quase manifesto sobre a desconfiança (ou exigência) que devemos ter com a arquitectura e o design. O ambiente escurece e a sala deixa-se ocupar por um battlefield. De um lado estruturas em aço galvanizado Builthefight (2015) que sugerem e incitam manifestações passivas “protestem, ocupem, resistem”[5]. Do outro lado, abrigos apenas de arestas de metal ficcionam um acampamento numa qualquer minimal paisagem pós-apocalíptica, iluminadas por um néon intermitente deixam ler “Too Late for tomorrow” (quando se apagam as letras “ate” surge uma “too…l/tool” para um futuro próximo).

A prática de Didier Fiúza Faustino orbita nesta lógica de questionamento e resistência da estrutura do que é o Design, do que é a Arquitetura e de como se relacionam com a sociedade, gerando, modelando, corrompendo barreiras. Com humor e ironia, erotismo e força (sensualmente violenta) e muitas vezes em forma de manifesto, mas sempre lúdico (um jogo de divertimento e prazer), Faustino deixa em aberto a reflexão sobre os objetos de ontem nos corpos de amanhã e nos espaços de hoje, ou talvez tudo isto em sentido inverso. De lembrar que a resistência ou Resist (2017) não é um conceito está subentendido em todos os gestos.

Exist/ Resist com curadoria de Pelin Tan estará patente no Maat até dia 6 de março de 2023.

 

 

 

 

[1] IKB  – international Klein Blue

[2] Além de várias peças onde surge o léxico “house” ou “home”, a exposição apresenta uma série de protótipos que exploram o espaço doméstico.

[3] Lê-se na nota explicativa da tabela que acompanha a legenda da peça.

[4] “O que é arte?

 O que é a arquitetura?

 O que é a forma? O que é a função?

 As coisas não são o que parecem.

 Não confiem nos arquitetos.”

Lê-se na tabela que acompanha a descrição da obra.

[5] Lê-se numa das notas de rodapé deixadas nas tabelas graficamente apelativas – folhas amarelas luminescentes que organizam o arquivo de 30 anos de trabalho e que lembram que o Design também é gráfico.

Arquiteto (FA-UL, 2014) e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL, 2021). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com algumas instituições, municípios e espaços independentes, de que se destaca "Espaço, Tempo, Matéria" (exposição coletiva no Convento Madre Deus da Verderena, Barreiro, 2020), "How to find the centre of a circle" com a artista Emma Hornsby (INSTITUTO, 2019) e "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" com o artista Tiago Rocha Costa (A.M.A.C., 2020). Foi recentemente co-curador, com a arquiteta Ana Paisano, da exposição "Cartografia do horizonte: do Território aos Lugares" para o Museu da Cidade, em Almada (2023). Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições, livros e exposições. É co-autor do livro "Gaio-Rosário: leitura do lugar" (CM Moita, 2020), "À soleira do infinito. Cacela velha: arquitectura, paisagem, significado" (edição de autor com o apoio da Direção Regional da Cultural do Algarve, 2023) e de "Geografias Urbanas" (em publicação). A atividade profissional orbita em torno das várias ramificações da arquitetura.

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