A pintura de João Ayres e as paisagens de João Nisa na Galeria Zé dos Bois
Nanquim preto sobre fundo branco e Primeiras Impressões de uma Paisagem são as duas mais recentes exposições na Galeria Zé dos Bois. A primeira é uma individual de João Ayres, o pintor que marcou o Modernismo em Moçambique no final dos anos 40 e 50. A segunda, de João Nisa, que apresenta uma misteriosa instalação audiovisual composta por paisagens filmadas no interior do Aqueduto das Águas Livres em Lisboa.
Na exposição Nanquim preto sobre fundo branco as pinturas e desenhos de João Ayres (1921-2001) saem à luz no primeiro andar da Galeria Zé dos Bois. Com o intuito de resgatar o legado do pintor, a exposição propõe-se olhar para a primeira década de produção artística de João Ayres, ele que ocupou um lugar importante no contexto artístico de Moçambique, onde viveu durante quase trinta anos.
João Ayres, nascido em Lisboa, parte para Moçambique em 1946, onde se instala como professor de desenho e pintura no Núcleo de Arte de Maputo. A exposição inicia-se com pinturas datadas entre 1947 e 1949, num conjunto de obras marcadas pela representação da realidade moçambicana. São telas neo-realistas, com uma utilização intensa da cor preta em traços largos e rigorosos, que na maioria das vezes servem de contorno e acentuam as formas dos corpos. Aqui, salienta-se a obra Cais do Gorjão (1948), onde Ayres pinta trabalhadores na doca de Maputo. É uma composição inquieta e pesada, marcada pela acentuada representação das mãos e pés descalços dos trabalhadores, em contraste com os seus estreitos corpos. Salientar as mãos, é evidenciar o esforço e o trabalho que realizam. Numa altura em que Moçambique sobrevivia ao período colonial, João Ayres decide colocar como protagonista das suas telas o colonizado, expondo e lamentando a sua condição social.
O segundo núcleo da mostra é composto por um extenso conjunto de desenhos de 1956 e 1957, feitos a nanquim preto sobre papel (dando título à exposição), que se destacam pelo afastamento da figuração. Nesta série, o desenho é composto por linhas negras que exploram formas e padrões que se aproximam da abstração. Ayres parece inspirar-se em elementos naturalistas, estilizando-os, e convertendo traços e formas numa geometrização livre.
As pinturas e desenhos que compõem a parte final da exposição — pintadas cerca de dez anos depois das obras que vimos na primeira sala — assinalam uma década de produção artística marcada pela influência da cultura moçambicana. João Ayres introduz uma nova expressão nos traços, simplificando formas e linhas, deixando que a cor invada a pintura. Com composições livres e vibrantes, as linhas negras contornam as formas de cor e a abstração instala-se completamente. Nesta sala, realça-se uma pintura sem título de 1958, feita sobre madeira, onde as próprias margens da tela foram cortadas à medida das formas geométricas nela pintadas, conferindo à obra uma expressão tridimensional. Na parte final da exposição, estão também em exibição um conjunto de esculturas Makonde e máscaras de parede do sul de Moçambique (dos anos 40), que parecem ter sido uma referência importante para a produção artística de João Ayres.
A presença de João Ayres em Maputo influenciou uma geração de artistas locais, tais como Malangatana, José Júlio, António Bronze, Mankew ou Bertina Lopes, que foram alunos do pintor. E, como refere Alda Costa (historiadora de arte contemporânea moçambicana), João Ayres, embora ainda pouco conhecido/reconhecido, foi um “Participante activo, com alguns, poucos, artistas, num novo momento da história da arte em Moçambique, viveu um tempo de muitas complexidades, dividido, entre diversas culturas, em situação de dominação e desigualdade, mas viveu também um tempo repleto de ideais e de procura de futuros[1].”
No segundo andar da Galeria Zé dos Bois, vamos ao encontro de Primeiras Impressões de uma Paisagem, a exposição individual de João Nisa (Lisboa,1971), que assenta sobre a relação estrutural que algumas galerias do Aqueduto das Águas Livres têm com a camera obscura.
A câmera escura é um dispositivo ótico que esteve na base da invenção da fotografia no século XIX. A relação entre este dispositivo e o Aqueduto das Águas Livres foi feita numa investigação realizada por Diogo Saldanha, que confrontou a estrutura deste edifício com o princípio fotográfico. Aqui, colocou-se a possibilidade de intervir nas aberturas existentes nas paredes do edifício, para acentuar a projeção de imagens exteriores no interior do aqueduto. É partindo deste tipo de intervenção que João Nisa realiza este projeto, transformando um segmento do Aqueduto das Águas Livres, numa espécie de câmera pinhole. As imagens invertidas que se projetam sob as paredes de pedra do edifício, foram filmadas e posteriormente trabalhadas pelo artista, resultando numa série de imagens da paisagem que envolve o aqueduto. O som que ouvimos foi também gravado no interior do aqueduto, e é composto por sons da água que ainda corre nas condutas do velho edifício e por outros que invadem o interior das galerias.
Entrar na sala de exposições é como entrar numa câmera escura. A única luz vem da primeira grande paisagem projetada, encadeando os olhos que se surpreendem ao olhá-la pela primeira vez. Vemos uma paisagem natural, árvores balançam ao vento, e o som que ouvimos parece acompanhar o que contemplamos. Ao todo a exposição é composta por seis projeções, de planos fixos e durações variáveis, que vão sendo progressivamente povoadas. A caminhar pelas várias projeções, a sensação é a de nos irmos aproximando cada vez mais dos elementos que fazem parte do exterior. Esta aproximação gradual, vai introduzindo na paisagem a presença de estradas, carros, animais ou construções precárias, retratando também uma Lisboa que se situa às margens.
A projeção que finaliza a sequência de paisagens é um plano de uma parede do aqueduto, marcada por uma estreita faixa no cimo da imagem onde vemos um conjunto de ramos a serem agitados pelo vento. É sem dúvida o plano mais estático de todos e, por isso, o que mais se aproxima a uma imagem fotográfica.
Neste labirinto imersivo de paisagens vivas, João Nisa cria uma relação íntima com a arquitetura do Aqueduto das Águas Livres, transformando-o numa câmara escura (num processo técnico complexo de captação de imagens), onde as irregularidades da parede de pedra unem-se à paisagem projetada, numa união surpreendente entre o interior e o exterior.
As exposições Nanquim preto sobre fundo branco e Primeiras Impressões de uma Paisagem estão patentes na Galeria Zé dos Bois até ao dia 7 de janeiro de 2023.
[1] Costa, Alda (2022). João Ayres em contexto: Os anos em Moçambique. pág.1