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O Ar Que Se Respira

Em Atmosfera, Ambiência, Stimmung, Hans Gumbrecht refere-se a um “poder oculto” das artes para ultrapassar a tensão entre os chamados estudos culturais e uma abordagem desconstrutivista ao fenómeno artístico. Ao longo do texto, ressoa a palavra alemã Stimmung para sublinhar que tal superação convoca simultaneamente recetores e obras (e, em vários sentidos e momentos, autores ou emissores); para identificar o modo como as obras “falam” a quem as recebe; e para remeter ao sentido mais comum de Stimmung: ambiente ou clima. A proposta é que, ao invés de nos limitarmos a desconstruir as obras em busca do sentido (preparados para o descobrir ou para o atribuir às obras), ou de nos cingirmos a olhar para a contextualização histórico-social-cultural da arte (simplificação grosseira de “estudos culturais”), tentemos uma abordagem que procure “ler” as obras prestando “atenção à dimensão textual das formas que nos envolvem, que envolvem [os] nossos corpos, enquanto realidade física – algo que consegue catalisar sensações interiores”[1]. O autor exemplifica com a leitura em voz alta de poesia de que os ouvintes desconheçam a língua, destacando fatores como o ritmo ou a sonoridade dos versos: “existe uma afinidade especial entre a performance e o Stimmung.” (id.) Se o exemplo provém de uma arte que recorre sobretudo à palavra escrita (acolhe sobretudo a interpretação enquanto descodificação), outras expressões, como a dança ou as artes plásticas parecem mais predispostas ao contacto sensorial, a uma atenção centrada na materialidade artística.

O que fazer perante obras que explícita e imediatamente solicitam um foco na materialidade – por serem obras plásticas –, mas que, do mesmo modo, lançam códigos a interpretar e instam a um posicionamento sobre a mensagem que assumem veicular? O que fazer, no caso de ser toda uma exposição que convoca esse posicionamento, essa reação descodificadora?

A exposição O Ar Que Se Respira não despreza a materialidade, nem a sensorialidade das obras apresentadas. Não poderia fazê-lo, pois é constituída por peças de autores que trazem um lastro identitário feito de material, de aspetos reconhecíveis na sua visualidade, ou no modo como se relacionam com o espaço onde se dão a conhecer: os traços na pintura desenhada de Ana André são a matéria visível que conduz a jogos de incitações, ocultações, desvelamentos. O caos adivinhado à frente do espectador clarifica a convivência, a carvão e grafite, de ossadas antigas, bicos de aves, antigos iPods®, algas, casas descuidadas ao abandono – fragmentos que, dando à costa do papel, colidem contra as ruínas de um mundo em extinção, tomado pela Natureza indomada. A ideia de convivências de fragmentos (supremamente escandida por T. S. Eliot em “The Wasteland”) torna a peça de Ana André (n. 1969) fio condutor da mostra na galeria Trem, espaço expositivo do município de Faro, que, na última década, tem sido programado pelo curso de Artes Visuais da Universidade do Algarve e pelo Centro de Investigação em Artes e Comunicação: pode descobrir-se ali – ou projetar nas obras essa leitura – algumas das intenções declaradas por Vasco Vidigal (n. 1958), artista e organizador da exposição, na folha de sala: o “ar que se respira” “condiciona e limita a atividade artística, ao favorecer uma atmosfera nebulosa de interesses entretecidos”. Há, pois, um manifesto, um tomar de posição, clarificado no final do texto dessa apresentação: para lidar com o “ar carregado de partículas nocivas que não podem deixar de afetar o nosso sistema”, com a indiferença que a centralidade do país vota à sua periferia, os artistas “pouco podem fazer além de sobrepor ao pivete as suas obras”. Cada uma destas combate o “mofo”, os odores que empestam o ambiente. É sobre esse Stimmung metafórico ou literal, na atmosfera de interesses locais e sobre as verdadeiras “partículas nocivas” que se projeta a sua ação. Luta-se para contrariar o poder da pestilência (remissão ao título que a Artadentro deu a um dos seus ciclos mais recentes, Preces para Afugentar Tempestades, Insectos Malignos, etc) e instalar um clima mais salutar, um ar menos contaminado – a arte ajuda a desinfestar. Ajudará, certamente, a purificar algum estatismo bafiento, ou a sugerir uma vivacidade sadia nas cores tantas vezes associadas à decadência: do bolor que se espalha em lugares mal habitados, Paulo Serra (n. 1965) aponta, através de técnica mista sobre papel, a diferentes camadas de musgo, traz a beleza aos verdes e faz com que ganhem vida as imagens sombrias do mundo vegetal. A materialidade da cor, a espessura dos traços, induz a ideia de movimento – a natureza adensa-se, materializa-se em forma de beleza e comunica as tensões de uma existência primordial, anterior à presença humana.

A obra de Serra predomina na sala – são seis os seus trabalhos apresentados –, funcionando como mote do poder absoluto da Natureza. Porém, é uma das duas peças de Vasco Vidigal, O nariz e as flores, que assume o cartaz, a identidade da exposição: a assomar sobre um muro de flores coloridas, manchas de um arco-íris desconstruído, aparece a cabeça de um ser mascarado, que aponta quer para as proteções usadas por físicos seiscentistas no contacto com os infetados da peste bubónica, quer para máscaras de Carnaval veneziano, quer ainda para as proteções contra as armas químicas usadas nas guerras do século XX. Como lidar com o mundo tóxico – das pandemias, das guerras –, senão com o riso carnavalesco e jogos de esconderijos entre flores? É entre plantas que surge a figura (embalsamada) de um javali, na única fotografia exposta, de Vasco Célio (n. 1975): apesar da presença em efígie, o animal parece escarnecer do lugar que assombra: por baixo de uma varanda, numa carreta entre ramagens, ainda cerceado por uma vedação metálica, arreganha os dentes, deita a língua de fora e ameaça vingar, pelo riso, a discórdia que o ser humano lançou para a Terra. A potência humana, por sua vez, vem simbolizada no seu contrário: no segundo dos quadros de Vasco Vidigal, são mãos e outros membros isolados de um corpo, amputados e em desarmonia, que representam o Homem, a nitidez dos seus traços a soçobrar por baixo das manchas de tinta que se espalham sem limites.

É sobre a ideia de limite que se forma o trabalho de Christine Henry (n. 1958). A sua peça única apresenta-se como maquete de “mundos discordantes, plataformas, plateias ou anfiteatros vazios como altifalantes de vozes que não se ouvem” (palavras da artista na reportagem da RTP1 à abertura da exposição, no começo de outubro). Miniatura de estruturas arquitetónicas, escultura de volumes e sombras, Engrenagem reclama do visitante a atenção que desequilibra o eixo instaurado pelo pilar central da sala da galeria (partilha essa função desestabilizadora com uma das peças de Miguel Cheta, “Hoje não tenho cabeça para…”). Os diferentes níveis das plataformas impõem uma rigidez de espaços que as sombras, na parte inferior, diluem, matizam – a luz e a sombra são elementos naturais que jogam com a intervenção humana sobre o espaço; é na sua articulação que se desenrola, afinal, a vida no mundo, na procura pela concordância que se busca a sanidade do Stimmung.

Miguel Cheta (n. 1970) apresenta duas peças que consubstanciam o conceito de Stimmung enquanto clima anímico, ambiente cultural e artístico que ao mesmo tempo materializa e desfaz ideias acerca de como os seres humanos habitam esta terra, respiram este ar. Uma delas, na parede mais distante à esquerda quando se entra na galeria, data de 2019, mas encontra aqui o contexto ideal: duas enormes lentes de vidro, curvadas e simétricas, uma disposta no plano superior em relação à outra, janelas de uma carruagem de onde se vislumbrasse o mundo – mas o sentido da curva indica que na galeria estamos no exterior dessa carruagem, inside looking in, na desconfortável posição de não ver quem (se alguém) nos observa, ou o que parecemos a quem estiver do outro lado dos vidros. Na outra peça, a materialidade instigante também é vítrea, gera e gere transparências, numa sugestão de planeta vermelho, de um mundo em chamas, que arde dentro da fronteira de uma esfera suscitada e delimitada pelo meio e pelo instrumento de projeção: um vidro de catedral, de cores trabalhadas, sobre um retroprojetor: a ordem da religião, a antiga ordem da escola (que o artista explorara em 2016, na exposição Liceu, sobre memórias construídas a partir da frequência escolar).

As peças de O Ar Que Se Respira solicitam a atenção à sua materialidade e recusam-na para interpelarem o visitante sobre questões que as transcendem; instauram uma ordem de questionamento e quebram-na, diluem as perguntas no caos dos elementos que representam, consequências de uma habitação da Terra em desequilíbrio (a desfavor do Homem) e da urgência de fazer saltar das fronteiras de uma região quase insular a arte que se faz dentro deste ar.

Até 7 de janeiro de 2023 na Galeria Municipal TREM.

 

 

 

[1] Hans Gumbrecht, Atmosfera, Ambiência, Stimmung, ed. Contraponto/PUC Rio, Rio de Janeiro, 2014, p. 14.

Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.

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