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Religião, Arte e Ciência são ramos da mesma árvore: entrevista a P. João Sarmento SJ, galeria da Brotéria

No princípio do século passado era revista de ciências naturais dos jesuítas portugueses. Para a história ficou como relevante investigação nas áreas da botânica, zoologia e genética, estendida à química, física, medicina, biologia e agricultura. Mais de um centenário decorrido, no ano do seu 120º aniversário, a Brotéria já não é só uma publicação que cruza cristianismo e cultura. Hoje ocupa o número 3 da rua de São Pedro de Alcântara, enquanto centro cultural multidisciplinar no Bairro Alto, marco artístico-cultural. Esta casa que se confessa atenta, onde convivem espontaneidade e discussão, não ambiciona surpreender, antes reafirmar-se pelas perguntas que explora, numa trança de relações entre a fé cristã e as culturas urbanas contemporâneas.

Na qual coexistem uma biblioteca, uma galeria, uma livraria e um café, animados por exposições, seminários, performances e workshops, e o percurso flui, natural, de porta sempre aberta. A fim de uma deriva nos dois sentidos: para que tanto entrem aqueles que a procuram, como saiam dela os seus, na ânsia contínua de fruir o que se passa culturalmente em Lisboa, e além dela.

Mafalda Ruão – A história dos jesuítas portugueses compreende um ciclo de sucessivas entradas e expulsões no país. A resiliência deve ser característica presente no sangue jesuíta. Como se reflete na Brotéria esta história?

P. João Sarmento SJ – Em Portugal os jesuítas foram expulsos por três vezes. Após a primeira expulsão e uma série de acontecimentos análogos noutros reinos europeus, cresceu uma onda anti-jesuítica feroz que levou à supressão da própria ordem. Contudo, na segunda expulsão, os jesuítas não foram sozinhos: todas as ordens religiosas foram extintas em Portugal. E os bens confiscados pela fazenda nacional. Ficaram, naturalmente, os bispos e o seu clero nas diferentes dioceses, mas as ordens religiosas foram consideradas incompatíveis com as luzes daquele século.

Pombal, o Liberalismo e a Primeira República reagiram à ameaça do poder e da influência social destes grupos humanos. Nos dias de hoje, em democracia, há outra compreensão sobre o que significa a autodeterminação e a liberdade de culto e de ensino. Porém, a história é sempre muito mais complexa do que aquilo que se possa dizer agora sobre ela. Ainda hoje, em muitas partes do mundo, estes desencontros e intolerâncias continuam a acontecer de forma violenta.

A resiliência é a capacidade de se recuperar de algo traumático. Creio não ser por aí. Talvez o que está no sangue do jesuíta seja mais remodelar do que recuperar; uma apropriação dos acontecimentos deixando-se contaminar e refazer por eles. Acredito que no sangue corra a efervescência do cristianismo, constantemente subversivo. Por isso sempre o mesmo e sempre novo. Isto reflete-se naturalmente na Brotéria, porque não acreditamos na estagnação e cristalização dos modelos. Águas paradas apodrecem.

MR – Precisamente antagonizando a inércia, e enquanto coordenador da galeria da Brotéria, o P. João apresenta um longo percurso na Filosofia, Teologia e Escultura. Como se vê: um homem da filosofia, do sacerdócio ou das artes?

P.JS – Faz parte da vida ser muitas coisas. Um compósito de naturezas misturadas. Um jesuíta não é diferente. Desde a sua fundação, em 1540, a Companhia de Jesus sempre potenciou um pensamento poliédrico, uma ânsia pela lógica do humanismo. Uma ideia de universalidade, de um conhecimento o mais integral e abrangente possível. Daí ser normal que, para além da formação em Filosofia e Teologia – e tantas outras experiências não académicas – todos possam ter uma formação que nos coloque a par daquilo que são os movimentos próprios de cada época. Neste sentido sou sacerdote jesuíta quando faço escultura, quando monto uma exposição, ou quando celebro qualquer um dos rituais cristãos. Mas não me vejo definido como nenhuma destas coisas. Na verdade, sou João.

MR – Qual é a relação entre a religião e a fé com a arte hoje em dia?

P.JS – A fé e a religião são forças que atravessam a história em múltiplas expressões culturais, e que resistem às mudanças das eras, com mutações surpreendentes. A arte também. Mesmo contra o anúncio do seu fim, ou perante a ascensão do pensamento puramente tecnicista ou científico, ela persiste.  A arte e a religião são irmãs gémeas, como explica Tomás Maia em Persistência da Obra II – Arte e Religião: “A arte e a religião são gémeas porque respondem ao mistério e só respondem por ele, não sendo todavia idênticas porque lhe respondem diferentemente.”

Contudo, para além dos constrangimentos dogmáticos dos diferentes sistemas religiosos, podemos encontrar um significado mais profundo em religião enquanto religare. Como uma potência que religa o separado, estabelecendo uma ligação ampla, aberta, entre o que é diferente. E que, desta forma, parece assumir uma estrutura muito semelhante àquela da experiência estética. Hoje, a relação entre arte e religião é um fenómeno que, embora mantenha a completa autonomia de ambas práticas, encontra uma enorme simpatia nos princípios que as animam.

Sabemos que há uma produção em arte que assume princípios que estão nos antípodas da intenção espiritual ou religiosa. Algumas destas até têm como objetivo servir o confronto ou a crítica desses mesmos princípios. Isto deve-se à sã autonomia secular destas áreas. Contudo, mesmo estes trabalhos deixam em aberto possibilidades da nossa apropriação. Que pode ser, mesmo contra toda a expectativa e intencionalidade, uma experiência de natureza religiosa.

MR – Aprofundando essa relação e citando a Brotéria “Há dinâmicas do cristianismo e da espiritualidade que, implícita ou explicitamente, atravessam as disciplinas e linguagens próprias das práticas artísticas contemporâneas…” Têm a cultura e a arte o poder de conectar teorias teológicas, políticas de tomada de decisão e os atuais problemas globais?

P.JS – Dependerá sempre do tipo de arte e cultura de que estamos a falar. Creio que o universo cultural e a arte que nos interessam são exatamente aqueles movimentos que se orientam à formação de um lugar privilegiado para essa conexão. Um pensamento que conflua numa cultura de encontro. Onde se dá a conexão entre os diferentes. Um espaço seguro para convivialidade da discórdia, para a experimentação e o erro.

A teologia, tal como a filosofia, propõem-se a investigar toda a atividade humana. Por isso, os dramas contemporâneos, como os de sempre, são matérias primas de pensamento e ação.

A cultura do esteticismo alienante, pelo contrário, deixa-se consumir à velocidade do scroll. Suga o tempo, capitaliza tudo, de modo a fazer do pensamento uma resposta à pressa, tendencialmente polarizada.

Quando afirmamos existir espiritualidade, implícita ou explicita na produção da cultura contemporânea, estamos a reconhecer uma espécie de teologia do olhar, dado que a nossa hermenêutica é a de ver a Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus (como dizia Santo Inácio de Loyola). Não compreendo, por isso, a existência de duas esferas – a teológica e as demais realidades – tocando-se tangencialmente. Mas antes, reconhecemos a realidade como algo múltiplo. Cheio de contradições, absurdos, dissonâncias e tantos outros processos surpreendentes, como um mundo “em trabalho de parto”.

MR – Se é vontade da Brotéria “desenvolver linguagens teológicas e estéticas que contribuam para o enriquecimento espiritual das comunidades eclesiais…”, qual é a relação com outras comunidades?

P.JS – Quando dizemos comunidades eclesiais, estamos a referir-nos às muitas comunidades que formam a Igreja Católica da qual fazemos parte. Neste sentido a Brotéria é um espaço aberto a todos esses públicos que, mesmo fazendo parte de outras comunidades, são convidados a sentirem-se em casa. O que tem acontecido frequentemente.

Outra dimensão é a relação com as diferentes comunidades não eclesiais, com as quais mantemos relação e promovemos o encontro. Seja a comunidade local do Bairro Alto, vizinhos ou comerciantes, ou mesmo comunidades ligadas aos mais diversos campos que nos procuram.

MR – Ao fim de 120 anos como pode a Brotéria ainda surpreender e diferenciar-se em Lisboa?

P.JS – A revista Brotéria cumpriu em setembro 120 anos de publicação ininterrupta. Contudo, a casa abriu em 2020. Neste sentido, foi reformulada significativamente aquela que era a missão da revista de Cristianismo e Cultura, para uma expansão num espaço de ação cultural mais integral. A revista surpreende, desde sempre, por ter começado pela botânica e zoologia num ambiente pedagógico de um colégio, passando pela literatura, política ou mesmo genética. Relata, assim, uma história intelectual através dos problemas investigados pela comunidade dos jesuítas de cada tempo, e que foram formando a nossa biblioteca. Hoje é uma revista mergulhada na cultura contemporânea e nas suas inquietações de modo eclético. Um corpo silencioso, denso, que reclama o desacelerar. Um pensamento insaciado pelas respostas apressadas.

Porém, creio que não temos a ambição de surpreender. Não queremos marcar a diferença enquanto valor. Acredito ser visível na nossa programação e atividade que há um desejo de aprofundar nas perguntas o que a nossa identidade levanta: o que é, ou como se pode, colocar a fé cristã ao encontro das culturas urbanas contemporâneas? Os seminários, workshops, conversas e exposições demonstram-no.

Por outro lado, somos ávidos em usufruir daquilo que se passa culturalmente na cidade e fora dela.

MR – Para quem ainda não conhece, como podemos introduzir a Brotéria e incentivar a visita?

P.JS – Se conseguiram ler toda esta entrevista eu pago uma cerveja aqui no pátio da Brotéria.

Mestre em Estudos Curatoriais pela Universidade de Coimbra, e com formação em Fotografia pelo Instituto Português de Fotografia do Porto, e em Planeamento e Gestão Cultural, Mafalda desenvolve o seu trabalho nas áreas de produção, comunicação e ativação, no âmbito dos Festivais de Fotografia e Artes Visuais - Encontros da Imagem, em Braga (Portugal) e Fotofestiwal, em Lodz (Polónia). Colaborou ainda com o Porto/Post/Doc: Film & Media Festival e o Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema. Em 2020 foi uma das responsáveis pelo projeto curatorial da exposição “AEIOU: Os Espacialistas em Pro(ex)cesso”, desenvolvido no Colégio das Artes, da Universidade de Coimbra. Enquanto fotógrafa, esteve envolvida em projetos laboratoriais de fotografia analógica e programas educativos para o Silverlab (Porto) e a Passos Audiovisuais Associação Cultural (Braga), ao mesmo tempo que se dedica à fotografia num formato profissional ou de, forma espontânea, a projetos pessoais.

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